5 de mar. de 2009

Boletim de Ocorrência.

Antônio dormia profundamente. Muito profundamente.

Dona Vera chama uma vez, duas vezes, o Antônio nada de responder. Chama de novo. Cutuca, belisca, sacode; o Antônio dormindo. Dona Vera vai pra cozinha preparar o almoço, o esposo deitado na rede, dormindo profundamente. Põe o arroz a cozinhar, frita uma bisteca gorda, corta direitinho a salada. E chora. Dona Vera sabe que Seu Antônio já não vai bem, que ela própria não vai bem e que chega o dia de cada um.

Não tem coragem de chamá-lo pra almoçar. Põe, catolicamente, os dois pratos na pequena mesa, humilde. Arruma os talheres, os guardanapos. Vê-se espelhada na panela de inox: as rugas, os cabelos ralos, brancos, as mãos que tremem pela idade e pelo Antônio, que dorme.
Termina o almocinho triste e vai acordar o Antônio. Chama, chama de novo, fala mais alto, grita desesperada: “Antônio, meu Antônio morto, meu amor Antônio, Antônio meu de meu Deus!” O velho inerte. Verinha ao lado dele: o coração parado enquanto as lágrimas não se paravam de rolar.

***
Luiz é motorista de funerária. Não gosta de trabalhar em domingo, detesta trabalhar à noite. Ali atrás, o carregamento (chama de carregamento, não quer ter outro contato com o que leva, e ele mesmo disse: só carrego, não ponho a mão). Domingo, as ruas vazias. A rua escura ilumina-se quando Luiz, motorista experiente, mete noventa na Amadeu da Luz. À sua frente, um carro atravessado que Luiz não teve tempo de identificar qual era.
Para quem viu, um susto: ferro retorcido, vidro estilhaçado, sangue na cara de um e de outro. Ninguém reparou na calçada. Lá longe, o que parecia um embrulho, uns dois sacos de linhagem, atordoou quem passava. Na verdade, aquele montinho de pele e ossos queria se fazer notar. Quando se soube do que se tratava, teve gente que correu, teve gente que fugiu.
***
Um rastro de flores. Cheiro intenso de crisântemo e cravo. Madeira espalhada aqui e ali. A surpresa: sobre a calçada, metros adiante, dois corpos flácidos, deitados como dormindo, jogados como num gozo e abraçados como pra sempre.

Ali, mais adiante, Seu Antônio abraçava Dona Verinha. E Dona Verinha, que morreu de amor, era toda do abraço dele. Não virou notícia, não quiseram fotografar.
Mas eu sei, porque eu vi. De alguma forma, estava lá. Sorrindo.

3 comentários:

Marina Melz disse...

O trágico pode ser bonito. Só depende dos olhos de quem vê. (Outch! seria um bom comentário.)

Anônimo disse...

Rolou um arrepio aqui na antepenúltima frase.

Lou disse...

Acho ótimo esse. Acredito que eu já tenha falado isso antes, mas por via das dúvidas. (:

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...