26 de mai. de 2020

uma vez me disseram para entrar
no carro sem olhar para trás - cho
rei até adormecer entre porto aleg
re e osório. uma vez me disseram

para dar adeus a um amigo e me
detive a cinco passos do caixão n
a tentativa vã de imaginá-lo vivo, e
mais de uma vez me despedi de m

ulheres crendo que o amor se man
teria. todos os dias me despeço de
mim - aquele ali no espelho já não

é mais o que ali antes se via. o ref
lexo também é antigo como é anti
ga a tarde, como é antigo este dia.
o antifascismo espanhol
enfrentou os fascistas com amor
também o antifascismo italiano
também o alemão
também o argentino
também o colombiano
o uruguaio também
o estadunidense
o salvadorenho
o cubano
o boliviano
o argelino
o palestino
o sul-africano
o paraguaio
o grego
o chileno
o iugoslavo
o português
o francês
o congolês
o romeno
o angolano
até o brasileiro

: com amor e com armas.
Tiago D. Oliveira, poeta baiano,
te saúdo com estes versos amenos
e inconformados - sei que há muito
não nos falamos, mas sei também

que sabes como os corações dos
poetas se contatam secretamente
entre batimento e outro, verso e outro,
palavra após palavra. venho te dizer

que sinto falta de te olhar nos olhos
(era uma segunda-feira, te lembras?
Milton Rosendo, Nuno Rau, Rubens
da Cunha, Clarissa Macedo, Gabriel

Povoas, Denisson Palumbo e a noite
quente de Salvador). Tiago D. Oliveira,
meu amigo, parece que sinto contigo
a brisa das tardes na Itaparica de

quando João Ubaldo ainda era vivo
(as piadas pesadas contadas aos
meninos). Há quantos anos e por
quantos ainda não será possível

escrever poemas ou lê-los ou recitá-
los? por quanto tempo ainda seremos
observadores atentos de um tempo
que não se vê findo porque interminável?

Tiago D. Oliveira, meu amigo, te escrevo
para dizer que nada vai bem, nada vai
bem, e queria poder fazer isso sorrindo
o riso da esperança, mas nada mais é

possível. nada mais é possível.
os dias são feitos de espera
três minutos para ferver o ca
fé às dez olhar o e-mail às d
uas ir aos correios às oito es

perar por ela. os dias são feit
os de promessas (entre parar
de fumar e revisar o livro nov
o, entre fazer as refeições e n

ão ouvir aquela canção que m
e fala de meu pai). onde estará
meu pai? os dias são feitos de

horas e horas a fio e de demo
ras. quanto tempo ainda leva
para pisarmos os pés lá fora?
para Milton Rosendo

a primeira vez que me despedi
do poeta alagoano milton rosendo
filho de estivador, dono de gatos
e leitor de poesia estrangeira
me deparei com seus olhos de
preocupação porque dali
em diante eu estaria sozinho num
rio de janeiro desconhecido onde
encontraria momentos depois outra
poeta, a zona-oestina bruna mitrano.

a segunda vez que me despedi
de milton rosendo, poeta alagoano,
foi numa manhã fresca em feira de
santana dias depois de termos visitado
jorge amado de termos cruzado a ilha
de joão ubaldo e de caminharmos ao
lado de castro alves pelo calçamento
de cachoeira.

na terceira vez que me despedi
do poeta millton rosendo foi entre
lágrimas quase desesperadas numa
tarde quente de santarém sem saber
ou sabendo que naquele choro pulsante
residia já o carinho e a saudade que
devotaria a milton rosendo das alagoas.
um poema que falasse do frio e ao
mesmo tempo das lontras que nad
avam no ribeirão garcia enquanto t
omava o rumo da escola - as perna

s tremendo a barriga dolorida pela
contração dos músculos - isso foi n
os noventa, já não importa, mas se
o poema ao mesmo tempo falasse

de como o frio se dissipa quando o
s calores se multiplicam como dois
corpos se esquentam quando junto

s como te preciso aqui nessa manh
ã de quinze graus então seria um p
oema que teria encontrado seu por

que.
o pai já não ouve e por isso
me furto e lhe perguntar se
se ele percebeu em algum
momento como tudo existe/

reside entre o lá maior e o
lá menor - os amores as p
erdas a saudade os reenc
ontros as esperanças des

avenças as certezas as in
certezas a saudade da mo
rena. talvez que fizesse si

m com a cabeça talvez nã
o dissesse nada talvez ne
m mesmo entendesse o q
bebo teus sucos
lambo teus lados
(és tu ou são as
plantas que escorrem
depois de regadas?)

naufrago imperdoado
sobretudo porque ventas

muito antes que venhas
te adivinho os passos
porque em direção ao quarto

com a agilidade das mãos
procuro respostas para
o que é mar o que é sertão
o que é amar e o que não.
esquecer a ordem dos fios
(qual cor liga ao quê /
qual pode ser cortado /
qual deve ser evitado)
e ao final da indecisão
perceber que esqueceu
novamente o alicate

o tempo pingando, pingando

(explosão)

sabotar-se também é uma
arte.
para Gustavo Matte

eu não vi - mas vi - quando a escola
te levou pro abatedouro seguir o caminho
dos porcos. como não vi - mas vi - quando
transportaram tua casa de caminhão pelas

ruas do velho oeste. não vi quando chegaste
em casa com umas quantas revistas em quadrinhos
[que te acompanhariam], não vi aqueles teus anos
duros - as noites tão longas, tão demoradas

pois desde que te vejo - sorte a minha nesse
mundo de misérias - eu vejo o menino que
foste no homem em que te tornaste - e sei

que vejo não vendo cada passo que deste
até essa ilha longínqua onde te fizeste
amigo irmão compadre abrigo e morada.
se ligia se marcos qual dos dois
ou ambos nunca soube quem ma
rcava o chão com pegadas de coe
lho com giz de quadro pelas calça

das do quintal de casa a mãe olha
va de longe e minha irmã e meu i
rmão davam pistas tá quente tá fr
io mais um pouquinho. depois ga

briel procurou a cestinha depois ni
colle não havia deus morto não ha
via sombra de morte apenas a pro

cura seguir as pegadas inscritas a
giz na calçada tá quente tá frio era
outono sim e disso lembro mui bem.
e esse sempre domingo sem
o bom dia de meu velho uma
risada solta de minha mãe log
o que deixo a cama - sempre

mais tarde do que preciso - es
se domingo sem os anúncios
de que já chegam vivian viníci
us as crianças - talvez tia ligia

tenha se adiantado - e agora
o pai conta as pedras do dom
inó - e agora o café da tarde

e então a vida se se aquieta e
o domingo se despede para re
começar - que dia é hoje?




se o calor daí te esquenta em
noites baianas de brisa - é preciso
supor o calor, é preciso supor a brisa -
aqui já nos encolhemos sob
cobertas sob desterros por se
cumprirem (onde no mapa pode se
marcar um X, então dali adiante)
mesmo havendo ainda crianças
cartas bilhetes um convite
para café um abraço cheirando
a cachaça enquanto vozes supõem
uma lua que aparecerá (sim, aparecerá)
quando já nos teus sonhos estiveres
tocando um poema impossível de ser
escrito - em que inscrevo um adendo,
se possível, com perdão mas sem
cerimônia, para dizer que dessemelhante,
gregório, é a distância.
joão me disse que tinha
frutas se eu não as queria
pensei que sim pensei que
frutas de quintal são mais

doces também joão é doce
e sorri largo quando lhe digo
que me apaixono quando lhe
digo que senti saudade desse

abraço exatamente esse com
café com vento sul - ouvi dizer
que o mundo se acaba entre

entre hoje e mês que vem mas
que se acabe assim no abraço
largo no sorriso largo de joão.
é na noite, sim, é na noite
que moram os medos seja
do escuro seja dos atropelos
a assombração que mora no

meio dos meu livros o grito
choroso de um amigo morto
dizendo vem cá ficar comigo
faz frio aqui faz frio os anjos

já estão adormecidos ninguém
vai notar se vieres ter comigo
ou chorar nesses meus braços

frios uma saudade um medo
como anda teu pai?, como es-
tão todos os teus?, ele diria.
difícil mesmo é de tarde pois
antes que o sol se ponha te-
remos essas horas brilhantes
essa moleza dengosa e as vo-

zes se acumulando numa ou
noutra história da tua infância
nas horas demoradas em
que esperavas teu amante di-

zer que estaremos salvos es-
taremos vivos depois de tudo
isso que parece eternidade

estaremos salvos estaremos
vivos se sobrevivermos a
isso a começar pela tarde.
de manhã é mais difícil porque
as manhãs são eternas - não
importa se já passa das dez.
é difícil fincar o peso do corpo

sobre o pés e erguer-se para
o mesmo dia - de novo - com
cafés e livros onde nenhum
poema é possível. de manhã

o dia inteiro se passa e nem
deu ainda a hora do almoço
quando penso em te ligar -

de novo - para saber se te
doem também os pés se
te arrepia também o pescoço.
ainda são possíveis os poemas
quem diria ainda são possíveis
contos reuniões ao vivo pela tela
do celular ainda são possíveis as

palavras que dizem sinto saudade
ou sinto tua falta ou queria teu abra-
ço como quando vejo meu irmão e
rimos como se fosse domingo como

quando converso com minha irmã
como há anos não fazíamos mas e
depois que as palavras não tiverem

mais significado e já não fizerem mais
sentido palavras olhares abraços
cartas escritas à mão fotografias

de família?
Quem tem rosto no rádio
ou é a voz um rosto que
os ouvidos desenham
: ao telefone, minha mãe
é uma voz
minha irmã, meu irmão

alerta de mensagem
(alerta alerta)
alerta de mensagem
não solicitada
notificação de feridos
notificação de infectados

[os mortos não têm voz
ou têm?]

abrir arquivo porque
trabalhar é preciso. a-
brir arquivo. abrir ar-
quivo porque comer é
preciso

[os mortos têm fome ou
são apenas rostos?]

também morrer é preciso
para que os cálculos para
que as estatísticas para que
os impostos os impostos
os impostos

[os mortos trabalham ou
são apenas mortos?]

a voz no rádio diz se vamos todos
morrer trabalhando
que o façamos com sorriso no rosto

a voz no rádio diz que pena
mas deus sabe o que faz
a voz no rádio diz que
a voz no rádio diz que
os números os números
não dizem nada a quem
não sabe ler

[os mortos já estão mortos
e quem viver HAHAHAHA
verá].
como quando tinha enchente e a
escola fechava porque as ruas estavam
inundadas porque as pessoas limpavam
a lama - a lama que um dia chegou na

nossa também. como quando era frio
e eu pensava se não haveria um decreto
que nos permitisse aos meninos ficar
debaixo das cobertas para não sentir

aquela dor aguda nos ossos das pernas.
como quando ela me dizia pra ver pessoas.
como quando havia pessoas pra ver.

como aquele pássaro que fugiu por eu
ter me negado a lhe cortar as asas.
como quando havia lado de fora da casa.
para Rodrigo Sarubbi
tenho rins de castidade e tártaros
sem vitórias nos dentes tortos e
amarelados. tenho uma perna de
passos curtos, outra de passos

largos. não procuro fardo porque
já me doem bastante as costas
dum peso imerecido que carrego
há anos sem nunca ter precisado.

atravesso o sinal vermelho, nado
mais para o fundo, gozo olhando
lá pra baixo (gravidade e impacto)

: não te assustes, não te assustes
: é possível dormir acordado é pos-
sível ainda amar e respirar no vácuo.
é como chorar o choro dos vencedores
nos pódios em que nunca estive
nos degraus que desisti de subir-descer
pois quanto mais esforço quanto mais
fundo quanto mais alta a queda maior o
tombo - olhos olhos olhos bocas bocas
bocas - de repente, um sonho tirado
sabe-se lá de onde - de repente uma luz
vinda não se sabe de onde para apontar
o caminho

[é por ali]

e enviar áudios que deveriam ser conversas
para os amores dizendo que está tudo bem
- mesmo a voz embargada como está mesmo
o nariz fungando como está - porque está
tudo bem tão bem como jamais esteve tão bem
como talvez nunca mais esteja (talvez amanhã,
talvez daqui a uma hora tudo desmorone como
a lei diz que tem que ser para as coisas que se
erguem)

[é por ali]

uma placa advertindo isso há dez anos - onde
estaria, estaríamos se houvesse placas dizendo
o caminho anunciando tombos advertindo os
meninos que fomos onde estaríamos se - quem
sabe deus - estendesse sua mão e dissesse vem
comigo, por aqui é seguro - mas estamos aqui
exatamente aqui e envio áudios dizendo que está
tudo bem minha amiga está tudo bem meu amigo
não te preocupes comigo porque hoje sei que o
caminho

é por ali

[pelo menos por enquanto]
para Caio Augusto Leite
deitem-se os prédios
torçam-se os viadutos
diante do verde dos teus olhos
de mar
- amemo-nos, anêmona

(são tentáculos são abraços
e o calor no peito dos homens
que se acaloram)

a água não levará tua casa nunca mais
porque reforças as represas com palavras

são diques
são cisternas
são barragens

apenas o concreto ainda há de agredir
teus olhos enquanto o verde da mata
em volta não tomar também o centro

(onde vais trabalhar todos os dias)
(onde vais amar quem sabe um dia)
(onde nos encontramos apesar da paisagem)

saberemos que os passos dados
trilharam caminhos de armistício
quando for levantada a última bandeira
da última guerra acontecida

por isso caminho - bússola,
anêmona, norte, dilema que
se escreve com a sorte de
poder ser lido verde ainda
por teus olhos de mar

(tua esperança nos homens
está escrita. tua esperança
nos homens está escrita num
poema)

amemo-nos, anêmona
e o mundo que se exploda
mais pra lá.
Poema somente para Rafael Tahan
quando enterrei o pássaro
não marquei o lugar portanto
o considero perdido

[acaso não estaremos todos?
aprendi a sonhar com a voz de
neil tannant e o synth pop dos pet
shop boys - acrescida de voyage,
voyage (aquela canção de quem
ninguém mais lembra)]

eu também me esqueço
do que sonho

; apesar da ritalina da gasolina
da amitriptilina da menina e de
caetano estaremos todos mortos
& vivos & mortos & vivos com os
joelhos embaraçados

: acaso as escadas não te fazem
doer as costas?
: acaso tua mandíbula não te perturba
também os ombros?

plantaremos uma árvore na floresta
do teatro oficina que ainda está por
nascer - e ali voaremos pássaros em
busca dum poema sublime e insensato
como são todos os poemas como são
os livros dispostos na estante e fora dela

(me lavo na louça da pia atrás duma limpeza
impossível me lambo na louça da pia atrás
dum prazer impossível me fodo na louça da pia

me corto
me curo
me salvo)

: acaso viver & morrer não será tarefa
para poucos?

[a feira deixa vestígios, a mão deixa vestígios
- e a chuva cai permanente apesar do sol apesar
do sol apesar de nós, que chovemos]

quando enterrei o pássaro
mirei errado e sinto-o dizendo
aqui-ou-não aqui-ou-não
dentro do peito.
Poema somente para Rafael Rocca
quando rafael pisou os pés
no portão principal do principal
campo de concentração nazista
denominado auschwitz-birkenau

onde o nazismo matou mais de
um milhão de judeus - para depois
incinerá-los -, onde se pode dizer
sem receio que a humanidade

encenou o próprio mal, foi ali
que rafael achegou-se a uma
árvore: "é uma bétula", disse.

"sabe-se disso porque se pode
arrancar pedaços da casca com
a mão". e seu sorriso doía.
porque a mãe nasceu pobre e foi
pobre a vida inteira é que um quilo
de farinha moída em medeiros - aquele
lugar meio sonho meio tristeza de onde

ela veio - pesa tanto: o coração de seu
pai, o coração de seus irmãos (tio maneca,
que fazia versos de reis de improviso,
me pergunto se não foi ali que me vi poeta)

ensacada e enrolada com fita de presente
: é um quilo de farinha com o peso de vidas
inteiras moídas na lida do engenho: tia rosa,

tia maurina, tio quido, tio maneca, tia maria,
tio lorinho, tio osvaldo, tio quintino, tio joão,
tio arno, irmãos de carminha, a maria minha mãe.
o pai pisou os pés naquelas
estradas de terra e mato por
todos os lados - morro morro
morro morro morro e riacho

passou calor em volta do tacho
de cozinhar carne de porco,
suou diante dos teares da fábrica,
puxando carroça, carregou o

pai morto, mas hoje, quando me
visitou, quando atravessávamos
a rua de casa, o pai reparou no

vento, comentou sobre o vento
e sorriu. o ar que se agita nos move
a todos, pai, de dentro pra fora.

nos move a todos
como nunca se viu.
[é preciso despedir-se do morto
tocar-lhe as mãos frias encarar
seu cenho sem expressão orar
palavras de coragem é preciso
deixar o morto ir]

então perdoa se não
cheguei muito perto
se tudo que fiz foi
esconder-me atrás
de nosso amigo mais
corajoso.

[é preciso suportar o abraço
da mãe do morto seus gritos
que te dizem Aí vai teu amigo]

e se possível a correção, diria
o primeiro amigo - ou não,
mas com o tempo tomamos
a liberdade de tornar tudo
mais dolorido.

[é preciso chorar o morto,
despedir-se. é preciso relembrar
o morto, revirar álbuns em busca
de uma fotografia que diga ela
própria o quanto fomos felizes]

dois meninos. eu, tão franzino,
invejava teus ossos pesados
teus dribles de quintal teu ar
amorenado e tua teimosia
(que não foi tão forte a ponto
de te manter na vida)

[é preciso visitar o morto]

tua fotografia de beca e capelo
numa lápide simples. devia ser
uma bola um lenço escoteiro
um brinquedo um comandos
em ação um foguete espacial
um video-game as pérolas que
descobríamos no jardim de tua
mãe o instrumento que copiamos
do fantástico para caçar fantasmas
(no sótão da casa velha de teu bisavô,
que já demoliram) uma bicicleta duas
um taco de bete mas lá tem apenas
uma foto tua de beca e capelo.

[e deixá-lo descansando]

pela eternidade ou aquelas nossas
horas. outro dia, parei em frente
a tua mãe e disse sou eu, o marcelo
labes e ela sorriu, envergonhada
porque já não enxerga - todos esses
anos foi questão de vista - outro
dia de novo e de novo basta apenas
anunciar sou o marcelo labes
para tua mãe sorrir como nos sorria
quando éramos meninos.

[é preciso esquecer do morto]

e não retomar seu nome a cada
passo em falso na vida a cada
tropeço a cada falha minha diante
dos outros - eles esperam tanto
de mim, eles esperam que eu seja
seja seja escreva escreva escreva
- mas ninguém sabe que aos
meninos basta um pouco de
silêncio um pouco de afeto
um abraço longo de reencontro
aqui ou aí, quem sabe
aí, é claro, que mortos não voltam
à vida a não ser em poemas
escritos às pressas com a leveza
demorada de uma despedida.

[é preciso também viver
é preciso também morrer]

como dizem que tem que ser
como dizem que tem que ser.
nem é mais possível encontrar
fotografias por acaso no meio
de um livro no fundo da gaveta:

as tornamos pastas que se apagam
com um dedo. as 36 poses não
podem te assustar porque

são 36 giga de fotografias
de que te livras com o movi-
mento de um dedo. assim

te desafias num ato liberdade
e força e abres os livros e
abres os cadernos onde nada

encontrarás e sabes bem disso.
salvar o poema de ti e de mim
que nada entendemos de poesia

salvar-me de ti que nada entende
de mim e nada sabe de poemas

salvar-te de mim que nada sei
de mim e nada sei de ti mas tento

salvar de nós a poesia que nada
sabe da gente onde viemos parar.
não procures pelo amor
no carnaval - antes, outra
coisa, uma coisa sem nome
uma coisa sem delicadeza

e não se pode dizer suor
não se pode dizer desejo
há uma coisa no carnaval
que não responde, porque

não tem nome. há essa
euforia, há esse encan-
tamento. e não responde,

por mais que grites. não
percas tempo: só serás
encontrado se mereceres.
suponha-se o amanhã

: as mortes cessarão, também
as dores, os governos cairão
um após o outro, e sorriremos
antes de dançar diante dum
apocalipse sereno

: os cancerosos serão curados
[também meu pai, que será jo-
vem novamente, como naquela
foto] e não haverá razão para se
preocupar com o anoitecer

: tudo recomeçará, mas pelo
início - o verdadeiro, anterior,
como uma esperança que não
se apaga, como amor entre
adolescentes: a vida inteira
para ser vivida

suponha-se o amanhã:
não contemos as horas, elas
voam não contemos os dias,
eles passam não contemos
nos dedos, que eles estarão
ocupados se abraçando.

suponha-se o depois de amanhã
suponha-se a vida inteira
enquanto ainda exista.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...