29 de dez. de 2019

tenho os pulmões e os olhos
queimados pelo cloro - vasculhei
a casa em busca dos teus vestígios.
o que ficou de ti e dos teus cabelos

(debaixo dos móveis, nos pés das
cadeiras, como pra dizer que estiveste
e te descabelaste por entre esses
cômodos) foi sugado pelos mil

watts de potência do aspirador.
limpei marcas, digitais, pegadas,
reflexos imaginados no espelho.

restam ainda a pele o os chumaços
de pelos que repousam abaixo do
ralo, inalcançáveis, permanentes.
Se fôssemos proprietários de um mercado de fim de bairro
em que vendêssemos utilidades para além
do arroz-e-feijão
: alvejantes, vassouras, óleo de peroba para
os móveis de madeira,
com um açougue,
uma balança,
uma máquina registradora
(as crianças comprando doces
depois da aula,
os velhos comprando aguardente
antes do almoço),
um letreiro anunciando as promoções
da semana
(o quilo da carne em letras miúdas),
e brinquedos de plástico,
potes de plástico,
acessórios de plástico
(um mundo sem ranhuras),
e baldes e bules
temperos diversos
sal grosso
sal grosso
sal grosso
e foguetes para comemorarem
datas como esta, de Ano Novo,
e um bilhete anunciando
"Estaremos fechados no dia 1o
por motivo de balanço",
e não para trepar, descansar
- adormecer diante da TV -
mas apenas para calcular
o que foi perda,
o que foi ganho,
quanto faltou para
atingirmos a meta
e discutir agressivamente
a meta.
Uma imagem de ti que te
ignora porque não te precisa
para existir

: holográfica, mora na memória
e não compreende os pormenores
dos teus gestos sutis.

Não tem hora para surgir,
embora prefira o anteceder
ao sono,

como os monstros de filmes de terror,
como fantasmas, contas em aberto,
uma torneira que goteja no banheiro.
homem, não te culpes se à hora
da arrumação das coisas confundires
as sacolas: saber o que deve
ou não ir fora te exige demasiado,
é questão de prática e de tempo
(saberás somente quando te fizer
falta um par de parafusos ou um
lenço ou um retrato tirado sabe-se
lá quando). é questão de prática,
e prática, sabes, se adquire no
passar dos dias e à necessidade
ou à falta do que agora desperdiças
- porque salvar não basta, e tu sabes.
- porque guardar não cabe, e tu tentas.
sobretudo não te culpes se o rebote,
se o repuxo te exigirem fazer sumir
o que pensavas dever permanecer.
não te culpes, que já tens os baús
cheios. não te culpes, sobretudo,
porque os carregas sozinho.
restam umas caixas e faltam
uns móveis - como uma pre-
sença que se ausenta para
sempre - não é de morte que

se trata, embora também seja.
há que se rearrumar a casa
comprar novidades parceladas
em muitas vezes, muitas vezes.

tudo vazio, resta o cheiro nas
paredes, nas esquinas entre
os cômodos. tudo vazio,

resta uma pergunta, única,
derradeira: afinal, e apesar
de tudo, fomos felizes, não fomos?
eu tenho meus amigos
(pra quando a vida dói)
eu tenho meus livros
(os escritos, os ainda
não lidos)
estou na maior cidade
do país pensando num
poema que dediquei a
juliana, que fala sobre
limpar a casa enxugando
tristezas, mas que disparate
se nem casa ou lar mais tenho.
está tudo aqui como
se perdurasse como se
se estendesse embora
a porta esteja para ser

fechada de uma vez.
está tudo aqui ainda
embora já não esteja
embora as escadas

me convidem a descer
pelos degraus pelas
vielas do fim do mês.

está tudo aqui mas
vejo não vemos não
vês que é noite alta.
milton rosendo me disse que
joão cabral lhe disse que um poeta
precisa saber quais são suas
vinte palavras - as que mais
repete, as que mais persegue,
as que não lhe permitem
dormir uma noite boa de sono.

eu, que sei poucas palavras
- que sei apenas palavras
simples - que sei apenas
palavras chulas - que engulo
mais que cuspo - que não sei
palavra nenhuma.

milton rosendo me disse
muitas coisas mais, que
não tenho tempo nem
coragem de lhes repetir
aqui: que o amor é vago,

que a vida é bruta, que a
poesia nos salva e nos põe
em permissão. milton rosendo
nunca teve dono, e eu me ofereço

como seu irmão.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...