3 de set. de 2020

é de lamber fotos no através
- são pixels são quilômetros -
enquanto o relógio reclama
que falta muito que falta tanto
acordamos atrasados à beira
do desespero - são tremores
de carne são espasmo de medo -
é a falta que faz teu nome entre
meus dedos é a respiração
ofegante de depois - é o riso
é o riso - ou são os dentes à
mostra enquanto a terra gira
enquanto o dia finda enquanto
a noite acossa.
deve haver mundo lá fora ainda
te digo como se estivesses aqui
ou como se recém tivesses saído
pela porta e estivesses parada no

corredor. o elevador demora e é
nesse tempo que corro ao encontro
do teu corpo - porque as almas não -
e te abraço e te beijo o pescoço e

te digo que fiques te digo que
voltes que permaneças que
invadas novamente minha casa

com tudo que é suor e calor. te digo
que voltes porque nunca partiste e
procuro em ti onde é que guardas

esse teu par de asas.
como se depois da última demão
de tinta descobríssemos que a
parede é falsa

como se depois do último móvel
escada acima descobríssemos
que nos mudamos para a casa
errada

como se a madeira viesse nova
mas já corroída pelos cupins

como se a casa me dissesse vem
e eu te dissesse sim

e tu não me dissesses nada.
(para Marcos Vinicius, meu irmão)

o íngreme nos exige algum
equilíbrio do corpo enquanto
âncora ou contrapeso

os pés pisam sem que os olhos
vejam / os braços lá e cá dando
senso e dando sentido

(há que se confiar em quem vai
à frente e proteger o quanto possível
quem segue na retaguarda)

todas as montanhas destas terras
desde aqui até lá adiante
vinícius já conquistou todas elas

(é com confiança que se exercita
o amor entre os homens: a passos
firmes e gotas de suor na lapela)

o íngreme nos exige experiência
: saber subir como com a insistência
de quem busca deus entre as nuvens

(do alto o mundo parece perfeito
do alto as distâncias se minimizam
do alto, lado a lado com meu irmão)

o íngreme nos exige experiência
: saber descer como quem procura
água e evita a todo custo a queda

porque apesar dos montes fomos
feitos em planície, ao lado do
ribeirão, de onde murmuro esse poema.

não faz muito a tarde incendiava
as plantas as gatas meu cabelo
despenteado os livros na estante
e esse retrato de ernesto el che

e essa nossa senhora de nazaré
e esse quadro que ligia bordou
quando tinha dez anos e essa
bandeira da palestina que urda

me trouxe como um amuleto.
era de novo um fim de dia de
novo aquela pequena morte
dos dias de novo e de novo

aquele nó na garganta aquele
momento de dizer saudade de
dizer que tenho medo de dizer
que não tenho o impulso de saltar

por essa janela que não tenho
o impulso de escrever mais um
poema para assumir de novo que
tenho medo de novo que tenho

saudade que não tenho o impulso
de saltar pela janela que não tenho
cara para escrever mais um poema
- porque todo poema é um grito de vida

e eu não tenho tido coragem.
e se perderes as palavras te restarão
as vírgulas e os sinais de pontuação;
te restarão as poças de chuva e as l
embranças de quando ainda era ve

rão e tu as tinhas todas, uma por u
ma, refletindo teus dizeres - rabisca
vas num caderninho, lembras? - e a
s folhas em branco te dirão que per

deste o tom do dizer ou um assunto
que valesse a pena, perdeste aquilo
que alimenta o poema e que não sa

bes direito o que é. se perderes as p
alavras restarão os silêncios, o ronro
nar dos gatos, teu reflexo no espelho.
o acúmulo de palavras no livro
: ignora-se tudo que signifique
silêncio.

tudo que não pode ser dito, tudo
que não pode ser escrito: apenas
palavras.

escrita como vingança, escrita como
fuga ou permanência: escrever como
quem morre

mas não tem ainda
a data exata.
ocorre o poema surgir da ausência
então
língua como forma de alcance
língua como revide e alcance
língua como gesto de força

ocorre o poema surgir da vontade
então
palavras como enlace de línguas
corpo contra corpo contra a parede
contra a cama contra o tempo

ocorre o poema surgir da distância

então.
a tarde de sexta com andré
como se afeto & história re
sumissem a existência.

amanhã gabriel tá aqui com
a família: faremos planos de
carnaval e ouviremos o

futuro.

despertei num sábado obscuro
que segue - como todo santo
dia - ignorando quem me falta.

mês que vem abraço meu pai
- sempre uma despedida - e
de cima de alguma montanha direi

a vinícius que do alto o mundo é
quase perfeito, mas que os sába
dos são essa mistura de tristeza

e ruína.

sempre uma mistura de tristeza
e ruína.
não há tempo para o amor
nem nunca houve - escuta,
joão, pega aqui a linha e a
agulha para cerzir esse bu

raco no teu peito. não há t
empo para o amor não há
proximidade possível - são
olhares vozes toques de d

edo na tela fria. mas quem
diria (quem diria) que apes
ar das agruras todas contr

a as quais não há fuga ou
prece o amor, joão, não só
te rói como (quem diria) re

acontece.
ninguém entendeu
nem os guardas os
policiais os milicos
das botas mijadas

ninguém entendeu
nem os compradores
de ouro as vendedoras
de roupas os catadores
de lixo

tampouco se percebeu
nas linhas ariscas dos
sismógrafos
ou se falou disso nas
linhas submarinas dos
telégrafos

quando um abraço parou
a cidade
para dois corações
conversarem de perto.
eu já coube inteiro no teu
abraço forte - se fecho os
olhos, sinto as cócegas
sinto o cheiro de tua barba.

já te invejei os olhos azuis,
a obstinação operária
- esposa, filhos, casa -
embora tenha te copiado

no cigarro e na cachaça
- aprendemos os dois a
andar em linha reta, pai,
apesar de tanta fumaça.

aprendi a chorar contigo
aprendi a sorrir contigo
sei de pássaros e outros
bichos, sinto a hora da

trovoada

embora tenha me mantido
longe da fábrica, embora
não tenha feito família,
embora só tenha a escrita

por morada

te carrego nesse meu peito
fraco dizendo que sinto tua
falta talvez desde o nascimento,
mas sempre é tempo, pai,

sempre é tempo de a gente
voltar pra estrada, de a gente
dizer que se ama, de a gente
fazer do que foi melhor do

que o que está por vir

porque toda história nasce
sempre inacabada - a tua
mão na minha, teu rosto no
meu, as cócegas da tua barba.
nenhuma palavra dita
no dia de hoje - talvez
nenhuma a ser dita até

o anoitecer : quem sabe
o que pode acontecer
quando se acostuma

a engolir palavras. digo
bom dia para minhas
gatas e não espero que

respondam, reclamo de
uma ausência e não es
pero que tu saibas,

lembro

de quando pensei que
o pai fosse me contar
tudo o que não havia

dito

mas a radioterapia.

há o câncer que surge
nas células e o que não
se dissolve na água fria.
(um poema para Felipe Pauluk)

olha felipe, voltei pros trilhos
não te falei porque nem tudo
que se tem pra dizer se diz

embora aquela vez tu tenhas
pegado na minha mão para
atravessar a rua ou os maremotos

todos. te sou agradecido por isso.

vez ou outra penso em te escrever
para te dizer que cada vez que te
leio caio num buraco chamado anos

90

(foi lá que tudo aconteceu, parece
foi lá que nos fizeram, parece
embora saibamos que viemos de

antes).

não sei se alcanço tua cidade para
falar da poesia de samantha da largura
das avenidas da cor da terra das árvores

(faz calor aí? faz frio?)

não sei se alcançaremos o fim de ano
se teus olhos pousarão sobre a praia
se caminharemos a esmo por estas ruas

antigas

como não sei se poderei te mostrar
meu carinho ao pai que é também filho
e dizer felipe, o feijão tá pronto, vem comer.
segredos de aspirador

: mentalize as pessoas
e os impropérios a elas
direcionados;

ligue o eletrodoméstico;

limpe a casa e esvazie
a raiva;

deite-se no chão e
lamba o caminho

por onde somente
tu passas

(não te incomodes com
os vizinhos

: estás sozinho no
mundo, estás sozinho
no edifício; estás sozinho
em casa).
eu bem sei que tá osso viver tá osso
dormir tá osso comer - e o preço do
feijão? - tá difícil lembrar de quando
era tudo difícil, apenas, como se ago

ra - bem, aqui estamos, sabemos, co
mo se doêssemos pra mais ou pra m
enos, não importa - estamos exatam
ente aqui a portas fechadas. eu sei b

em como tem sido duro falar de futu
ro falar de aluguéis e que não existe
espaço para poemas de amor e que

não existe espaço para o amor e qu
e vamos nos condenando e morren
do aos poucos. eu sei bem, eu sei b
uma vez fui bêbado à ópera
assistir o ouro do reno, de
wagner, no teatro municipal
de são paulo - enquanto su

bíamos a escadaria um mora
dor de rua apregoava a chu
va que viria e lavaria tudo das
almas das pessoas às tristezas

do mundo. dormi, acordei, e
tive tempo de ver as cinco ha
rpas dispostas ao fundo do
palco nos minutos finais do

espetáculo. que desperdício,
pensei, cinco harpas para tão
pouco tempo; e as harpistas
e o nosso tempo de especta

dores. talvez já tivesse chovi
do, talvez as pessoas estives
sem curadas de suas dores e
o mundo fosse afinal outro

(não era). saí do municipal
com a boca seca e dor de ca
beça pensando que não havi
a entendido merda nenhuma

de wagner, do ouro do reno,
da riqueza do municipal e da
arrogância de seus espectad
ores. lembrei disso porque es

tou ouvindo a ária da rainha
da noite, de mozart, para rec
uperar uma imagem da infân
cia, quando ouvia o disco do

filme de alan parker no carpe
te da sala de casa - era de ligia
aquele disco - e eu não sabia
o que aquela mulher dizia nos

agudos e agudíssimos daquele
trecho que vocês bem sabem q
ual é. agora vi que existe a pos
sibilidade de saber o que aquel

a mulher cantava com tanta an
gústia, mas deus me livre de d
esvendar mais um mistério da
vida quando todos os outros j

á estão expostos: o amor e a f
alta dele, a morte de amigos q
ueridos, as cartas que se acum
ulam, as feridas que lambo soz

inho. deus que me livre mais u
ma descoberta, que já não tenh
ho podido lidar com o que desc
ubro e nem quero saber de mais

nada.
em 1994 eu não abri a porta
pro pai entrar em casa e disso
resultaram dez anos de casa
sem pai - a culpa deve ter sido
minha - e a sensação estranha
de que o pai existia mas tinha
ido embora sem despedida

em 2001 enquanto meus
amigos nos despedíamos
de três anos de internato
(choramos dores que ainda
não tínhamos, inauguramos
uma dor nova aquele dia)
eu descobria que se despedir
dói mas serve pra escrever

hoje eu queria que esse dia
durasse o tanto daqueles dez
anos sem o pai, o tanto daqueles
três anos de poemas, violões
e beijos de língua sob as árvores
na praça central da escola
evangélica

mesmo que disso resultasse
escrever mais nada
porque o texto pode esperar
porque o texto pode esperar
porque o texto pode esperar
enquanto a vida se alarga.
a primeira vez que pisei os pés na rua de casa: 
uma rua da capital - a rua do príncipe, por onde
passavam os cortejos fúnebres até o cemitério
que não existe mais - os mortos ainda hão de
derrubar essa ponte que lhes tirou o sossego
e forçou sua mudança - em que tantas vezes
caminhei com Luiza, que me falava de o centro
ser o espaço mais bonito dessa cidade porque
é aqui que caminha o povo
- como Fábio, o viciado que faz tempo não vejo e que
deve ter sido enterrado como indigente numa cova
rasa; Fábio foi quem primeiro me estendeu as mãos
primeiro para pedir trocado, depois para me perguntar
se eu estava bem - os olhos tristes de quem não vê
futuro, a vontade que eu tinha de ser livre como ele;
ou isso, ou voltou para casa, o que dá no mesmo
porque há retornos que matam, e a mim me mataria
percorrer aquelas mesmas ruas. mas disso não vale
a pena falar.
os trajetos: cruzar o centro para encontrar André,
cruzar o centro para encontrar Rodrigo, cruzar
o centro para encontrar João naquele mesmo café
onde somos mal atendidos e onde nos servem como
se nos prestassem um favor
(outro dia, toquei o braço de Rodrigo e fazia tanto
que não o tocava; de André nunca mais soube,
João me trouxe mais daquele doce de jaca
e bananas vermelhas; falamos de literatura)
hoje o restaurante de seu Itamar estava fechado
então fui pedir a marmita do Carioca - seu Itamar e
o Carioca são povo e estão no centro desde antes
de Dias Velho aportar por aqui, eles me disseram
(são piratas, eles; por isso esse ar salino).
o vendedor de raquetes contra mosquitos e agulhas
de fogão, seu pregão anasalado, sua fala pausada
- se vende droga ou abortivos, nunca saberemos -
a mesma rua em que me escondi com Manu daquela
chuva de verão (um calor medonho àquela hora da
noite) e por onde caminhei com Gustavo fazendo
confundir lágrimas e chuva no rosto em nossa última
despedida; no sábado fez sol, então Caio e eu fomos
à praia antes do voo; escondi minhas lágrimas
no mar porque se Caio me visse chorando talvez
se partisse ao meio só para me fazer rir;
Maffeis não caminhou por essas ruas comigo,
mas quando isso acontecer terá sido como se
sempre;
Matheus voltou da Alemanha mas não alcançou
a minha rua por causa da pandemia;
Milton não alcançou a minha rua
porque somos dois fodidos
e eu faço questão de pagar suas passagens;
Bruna vinha, e ainda virá;
outro dia ofereci a casa para Camila;
Rafa vinha também;
Ithalo disse que no ano que vem;
quando Vinicius trouxe aqui o pai e a mãe
nunca me senti tão orgulhoso de ter uma
casa onde entrarem, se sentarem, almoçarmos
e depois eu fui grande dizendo a Vinicius para
dobrar à direita e à esquerda enquanto passeávamos
de carro por essas ruas - eu que sempre ouvi à direita
e à esquerda de meu irmão porque ele sabe todos os
caminhos e sabe que dói e sabe onde dói só não
tem jeito com as palavras;
Ligia vem também, me disse;
como foi difícil aprender a andar sozinho onde
caminhávamos juntos: eu nunca sei olhar
o caminho, por isso esbarro nas pessoas,
por isso deixo de cumprimentar os conhecidos
: cato poemas na sujeira da rua, penso num romance
novo encarando um rato gordo (come melhor do que eu,
parece); compro cigarros na rua de cima, compro
cachaça para meu Exu ao lado de onde compro incensos;
não quero mais sair de casa enquanto não souber
que nos encontraremos todos, e porque saudade
é um prato insosso que nos faz doer o coração
e chorar de saudade enquanto o relógio tic-tac
esmagando o peito
enquanto salivo ao dizer teu nome.
repara que se tens as mãos
geladas e as pões na panela
quente demorará para que teu
cérebro compreenda, por conta

do amortecimento que causa o
frio, que dói e que esta dor é um
alerta que te evita queimaduras
mais graves. Poderias ter repara

do na quentura da panela, porém
o gelo das mãos te amorteceu o
pressentimento e agora que já

passa seu efeito tens dor e alcan
ças pensar que assim é quando
amas - por descuido ou acidente.
talvez de manuel tenha restado n
a ossada aquela dentadura que c
hegava antes e para quem visse
carlos talvez não houvesse novid

ade posto que já era magro. de m
eus amigos ninguém vai nunca e
ncontrar esqueleto pois os proíbo
de morrer antes de mim e mesmo

assim se me encontrassem fóssil
talvez se percebesse esse osso a
gudo acima dos olhos ou meu es

porão calcâneo ou meu coração
ossudo porque nem tudo são mús
culos e pra amar é preciso tutano.
muito mais que líquidos e lençóis
gostos suores gemidos bemóis
um querer desse requer outro mundo
outras tardes outros ventos nós também

outros. que fôssemos outros nossos
passos nossos olhos nossos bocejos
virtudes cansaços e que fossem outros
os livros que lemos e outro o idioma

em que escrevemos poemas antes de
dormir antes de acordar antes e depois
da tarde antes e depois do amor antes
e depois de ti. mas o mundo ainda é

esse como segue igual este país esta
sua gente nossos sotaques distantes
e é sempre tarde para o amor é sempre
tarde quando nos olhamos no espelho

e pensamos como seria afinal se
fôssemos outros mas isso não é
pergunta que se faça a essa hora
da noite nem a essa altura da vida.
eu disse pro heyk pimenta que tá
frio e chove mais que para por is
so a umidade não permite que as
toalhas sequem e por isso me dó

em as juntas mas não disse como
me sinto importante em falar com
um poeta que admiro e que me fa
z sentir-me grande pelo simples f

ato de que lá ele respira e olha a p
aisagem do rio de janeiro e sonha
com dias melhores e se alimenta d

e verduras escolhidas porque é dis
so que se tratam as palavras a ge
nte escolhe escolhe escolhe escol
o pior é despedir-se ou talvez eu não
tenha superado a cadela atropelada
que o motorista deixou do lado de
dentro do portão - porque o resto
também não superei, então é tudo
a mesma coisa, uma despedida só
que não tem fim porque a lei diz que
- momento solene, todos de pé -
a lei diz que é sempre um adeus
atrás do outro e o importante é que
nos recuperemos cada vez mais rápido
e sintamos cada vez menos cada perda
e cada falta. outra lei diz que - de pé,
todos de pé para ouvir a lei - que a vida
é mesmo uma merda e que estamos
todos fodidos. já podem sentar-se para
ouvir a oração. as leis não falam de deus,
e eu espero deus sentado. quando deus
foi embora eu também senti o que sinto
agora, mas isso já faz muito tempo e, sim,
repito, as despedidas não terminam nunca
e são sempre a mesma falta, a única,
desde a cadela atropelada que vi portão
adentro e pensei que tava dormindo, mas
tava morta.
é como isso de manter todas as l

uzes desses três cômodos acesa
s e imaginar aqui do sofá da sala
que alguém prepara um café na c

ozinha enquanto no quarto outros
passos e passear no corredor do
prédio - as luzes todas acesas - p

ara reentrar neste apartamento co
mo uma visita que chega de viage
m como eu mesmo chegando de v

iagem e me encontrando de surpre
sa. que bom que chegaste, eu me
diria, vinha me sentindo tão sozinho.
pode-se denominar angústia
o sentimento ao ouvir o agud
estridente de sia quando can
ta em chandelier exatamente

aos 2'41'' somente uma vez i'
m gonna fly like a bird throug
h the night - eu vou voar com
o um pássaro pela noite. tenho

a dizer que meu exu tem esta
do com sede porque não é ho
ra de ter bebida em casa e qu

e não há forma maior de derro
ta que querer voar estando só
brio quando ainda me falta um

par de asas.
quando hebe de bonafini
- la madre de las madres
de plaza de mayo -
me contou que seus maridos
haviam todos morrido
porque não souberam, não
puderam expressar a dor da
perda de seus filhos, de seus
entes queridos, como elas,
as mulheres, que foram à
luta, que enfrentaram os milicos
[as calças mijadas, as botas lambidas]
e mantiveram abertas todas as
feridas porque eram mulheres
e eram mães de 30 mil desaparecidos
foi que entendi que é às mulheres
que cabe empunhar as armas, hastear
bandeiras, reclamar seus mortos,
manter vivos seus filhos.

eu era apenas um menino
de braços dados com um
um pedaço da história.
assumo que sempre invejei
o grito que o cantor solta antes
de um refrão que lhe dói seja
pelo que vai dito seja por uma

tensão entre acordes e por isso
criei uma banda que nunca serviu
para nada senão para me dar esse
prazer raro do grito antes do refrão.

assumo que me vesti de homem
muitas vezes na tentativa de ser
pai para que meu pai visse meu
filho e dissesse teu filho também

é meu filho e fôssemos ambos pais
duma criança que não veio ao mundo
nem virá seja porque o tempo é curto
ou porque esse encontro não será

possível. assumo que procuro escrever
o grande poema aquele que calará todos
os homens e diante da minha falência
frente às palavras é que continuo a

enfileirar amontoar reescrever frases e
versos contínuos que de nada valem
posto que o grande poema resulta
impossível de ser escrito, como viver

também é, como amar, como morrer.
i.explicação

o nome de minha mãe é
maria mas esse poema
não é sobre ela.

ii.
aprendi cedo a olhar estrelas
com minha irmã, com meu irmão,
e desde cedo aprendi onde estavam
as três marias.

iii.
as três marias que bandeira enaltece
em seu poema as três mulheres do
sabonete araxá - nem bem um poema
senão um amontoado de pregões e frases
feitas das campanhas de publicidade da época.

iv.
parte mais brilhante da constelação de
órion que os astrônomos denominam
seu cinturão.

depois de anos foi que vi o busto, os braços,
o arco, a flecha, as pernas e o cinturão.

v.
na minha cabeça, as três marias não eram
três, mas quatro, porque terezinha de jesus,
aquela da canção, também devia ser uma
maria.

vi.
depois aprendi onde ficava o cruzeiro do sul
verdadeiro, também o falso, aprendi onde ficavam
escorpião, vênus e marte.

vii.
o melhor lugar para observar estrelas é do rio
que separa os municípios de cristal e camaquã,
no estado do rio grande do sul, principalmente
em noites de verão.

viii.
o segundo melhor lugar para observar estrelas
é do quintal da casa de meus pais, em blumenau,
estado de santa catarina, vinte e cinco anos atrás.

ix.
eu nunca voltei a cristal ou a camaquã, nem voltarei.
eu volto à casa de meus pais, mas vinte e cinco anos
depois.

x. conclusão
esse poema é sobre bem outra coisa.
não teve águas de março fechando
o verão não teve páscoa não vai ter
são joão - tem mais de dois meses
que não sei de abraço algum ou do
calor de outro corpo

mas vem junho (antes, bem antes
de agosto) para mostrar que o que
não teve não tem problema talvez
não tivesse mesmo precisão

a grande questão é sempre o que
está por vir

quem está por vir

e virá.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...