1 de out. de 2019

parece que a europa não
tem lado de cima

(impressão minha,
claro,
infantil e daninha)

olho o mapa
: acima estão bélgica
alemanha e aquela porção
de frança tão conhecida,
a normandia

(será se pela morte de
africanos mouros e
americanos
será se pelas barreiras
pelas fronteiras
ou apenas miopia
geográfica)

porém

há um lado de cima
também na espanha
acima estão os
países baixos
os países nórdicos
os deuses católicos

e a primeira pedra
da coroa posta
sobre a cabeça
da rainha.
como se bastasse amor para
lavar o sangue e as marcas
as perdas e as feridas de bala

: amor apenas não cura nem salva

[como se bastassem palavras de ordem
gritadas ao vento, escritas em muros]

como se bastasse orar a um
deus inútil para quem levantamos
os olhos pedindo luz no caminho

: é este o caminho, e é tão escuro
abre os olhos, meu bem, é dia
as horas são cinza como a vida
e nos disseram para comemorar
comemoremos o dia, meu bem

suas falhas seus erros suas horas
que não batem seu momentos que
não fecham: as rodas do dia deixam
marcas no asfalto e em nós, apesar

de não chamarmos a ambulância
apesar de não precisarmos de curativos
: o dia fere e cura, fere e cura

é preciso agradecer por isso,
disseram. é preciso agradecer
que o dia fere mas não mata.
se não estes teus olhos
sonolentos estas olheiras
estas rugas que denunciam
teu cansaço nisso tudo de estar

vivo. se não este suspiro
este olhar incerto e ao longe
se não este enfado esta
preguiça das coisas da vida.

se não esta lembrança
repetitiva que incomoda
incomoda incomoda incomoda.

onde estiveste que não te
soubeste nunca espelho?
queimaste tua casa, porém.
as distâncias não são seguras
entre comprar cigarro e atravessar
a rua. as distâncias não são amenas
entre o beijo e o sexo, entre o grafite

e a pena. não é seguro andar só
nas cidades brasileiras, nas capitais
ou nas beiras, não é seguro caminhar
nas calçadas, debaixo das marquises

também não é seguro ater-se à poesia
dizer-se poeta, olha ali o poeta, olha ali
quanta tristeza cabe num mesmo homem

não é seguro amar as poetas, tampouco
as atrizes. não é seguro dar o próximo
passo. há placas advertindo, que ignoras.
homens empregam outros homens
para construírem suas casas para
dirigirem seus carros para criarem
seus filhos para matarem outros

homens. empregam outros homens
para viverem em seu lugar - comerem
cagarem gozarem em seu lugar - homens
empregam outros homem para foderem

suas esposas em seu lugar para passarem
fome em seu lugar para viajarem e
serem fotogenicamente felizes.

homens empregam outros homens para
morrerem em seu lugar para morrerem
em seu lugar para morrerem: há vagas.
sentava na calçada esperando
as visitas tinha coca-cola gelada
tinha pastelão e salgadinho mas
as pessoas demoravam tanto que

pensava ter de passar o aniversário
sozinho eu era apenas um menino
esperando presente esperando visita
a mãe trabalhando o dia inteiro

por alguns anos o pai não veio
depois os amigos foram mudando
depois os amigos foram morrendo

eu mesmo mudei e foi tanto
eu mesmo morri e foi muito
só a calçada permanece lá.
árvores não plantei
antes cortei as havidas
em algum quintal da
infância

filhos não os tive
por medo de não
amá-los com a
merecida constância

livros tenho alguns
lidos outros não
que vendo e/ou troco
por cigarro e por pão

ser homem, dizem,
é fazer isso e aquilo

e eu falho miseravelmente
nisso e naquilo.
Alfredo me foi pai
aos trinta e três.

Foi de novo depois
que voltou pra casa.

Depois de novo,
quando acabou o álcool.

Outra vez quando eu
não dormia e ele me
acompanhava.

Mas tive outros

: Vinicius me foi pai
aos dezoito, na ausência
do outro.

Depois de novo quando fui embora.
Depois de novo quando retornei.
Sempre e de novo quando me
abraça.

Barone me ensinou Rimbaud
e Polanski.

Theobaldo me ensinou dos
números.

Elias me ensina das plantas e
dos bichos.

Há ainda outro, de nome
Marcelo Labes, que sempre
abraça o menino que fui
e diz que vai ficar tudo bem,

vai ficar tudo bem.

Tudo dói, mas
tudo passa.
tia rose marie me dizia que seria
maestro na escola de música
onde eu era bolsista: tinha 10 anos
e não sabia ainda de onde vinha.

adriano me ensinou a arranhar o
violão, compus três ou quatro
canções tímidas para falar de amor
e suas algaravias.

meu primeiro contato com deus foi
um LP de mozart irresponsavelmente
deixado ao lado do aparelho de som.

há que se cuidar das crianças e não
permitir-lhes tocar a face de deus com
as mãos nuas, com a alma ainda limpa.
vês o homem, não o poeta:
seus trejeitos e vícios e os
terrores que aparecem à
noite independente se dia for.

vês o homem, não o menino
com suas aventuras e sua coragem
enquanto atravessa selvas
enquanto domina feras.

vês o homem e sua fraqueza.
vês a espera do homem e te
regozijas: achas que ele espera por ti.

vês o homem e suas falhas.
mas o que vês não é um homem.
quando muito se diria que.
se aceitarmos que precisamos
parir o poema ensiná-lo a caminhar
a engolir a sorrir a chorar e a coisa
toda. se aceitarmos que precisamos

amar o poema, que precisamos odiá-lo
(como são os amores entre os homens).
se aceitarmos que precisamos chorar
com o poema, prejudicá-lo. se aceitarmos

que precisamos foder com o poema
sob promessa de amor eterno. se
aceitarmos que precisamos matar

o poema e enterrá-lo com latins
e coroas de flores. se aceitarmos
que não precisamos do poema.
meu pai tinha uma carroça
mas não tinha cavalo e a
puxava ele mesmo comigo
em cima ao lado do trato
para os bichos - vacas com
nome. a mãe fervia o leite.

meu pai tinha uma carroça
e era ele próprio o cavalo
puxando a madeira sobre
rodas comigo em cima.

eu achava que guiava, pai.
eu achava.
se eu pudesse voltar
naquelas tardes amarelas
deixaria igual o peito ardido
de cachaça o peito ardido
de cigarro deixaria igual
o medo do pai (pneu subindo
a calçada) o medo da mãe
as patroas o patrão deixaria
igual o álbum molhado de
ping pong amazônia as
figurinhas que vinícius me
roubava deixaria igual a
cadela atropelada deixaria
igual a falta de sono o medo
da morte e aquele desespero
de acordar mais cedo e ver
a casa vazia.

se eu pudesse voltar
naquelas tardes amarelas
apenas daria jeito de devolver
os passos ao barrerito
para que menino nenhum
pudesse ouvir outra vez mais
uma canção tão triste,

tão triste.
contei as lâmpadas do lustre
enquanto esperava os livretos
: dezesseis, concluí, depois
do recálculo. texto é câncer,
e estar só pelo centro dessa
cidade antiga me faz cruzar
fantasmas e responder ao
boa noite que me vem do
escuro. perdi um café com
texto e me saí sem azia dum
fim de tarde passageiro,
perco mesas de bar mais por
tristeza que por medo.
voar eu sei bem, acrobata
que fui, e hoje me faltam as
asas. pensar a vida sem
pensar o texto é a forma mais
triste de voltar pra casa.
é preciso ser homem
os homens são homens
homem que é homem
que é homem
mas a porta do porão.

um homem anda assim
fala assim come assim
fode assim e não chora
um homem existe assim
mas a porta do porão.

homem homem homem
olha ali tua mulher olha
ali outra tua mulher são
propriedades as mulheres
afinal que ser homem

é ter propriedades e mulheres
a menos que não a menos
que te perguntes e te visites
menino e te vejas e te abraces
e mantenhas a porta do porão

sempre aberta.
homem, não descanses! a vida é longa
- por mais que o neguemos; o amor é
turvo, a saudade é muita, o trabalho
é tanto e tu aí, de olhos fechados.

não descanses mesmo que os dias cinza,
mesmo que as noites muito claras
- há sempre algo se passando que foge
ao teu mínimo controle das coisas.

desperto, verás que o amor te exige
presença, que teus amigos ainda te
esperam e que não há por quê fugir.

sabes também: fuga maior não há que
aquela em que te repetias: fingir-te morto
estando vivo e fazendo a vida dormir.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...