19 de dez. de 2023

já ia avançado o dezembro naquele
dois mil e hum já ia também naque
le dois mil e vinte os dezembros se
mpre têm disso: são somas de térm

inos são glórias são vício e os dias p
assam enquanto dizemos menos um
menos mais um com os olhos brilha
ndo à espera dos fogos. quando abr

acei sallati chorando vendo os fogo
s queria dizer que o amor mas disse
apenas que a morte. e a questão pr

incipal desse poema é que em casa
nunca comemoramos o réveillon. e
essa é a minha vingança silenciosa.

9 de dez. de 2023

amanhã estarão proibidos os carros
blindados os condomínios fechados
as escolas privadas os quartos de em
pregadas as heranças e os cargos de

indicação no alto funcionarismo púb
lico. também estarão proibidas as be
nesses por sobrenome as festas de d
ebutantes e para qualquer cargo ele

tivo será exigida prova de ética e san
idade mental antes das questões ide
ológicas. amanhã estarão proibidos t

odos os pontos acima. depois de am
anhã haverá um silêncio profundo e
daqui a dois dias esse país será outro.

25 de nov. de 2023

em algum momento da tua infância
foste surpreendida pela cena insólita
da gata que havia acabado de parir
com a pata de um filhote na boca.

o excesso de amor, se poderia dizer
o excesso de cuidado, talvez (talvez)
ou somente se poderia dizer fome.
saciada, nem terá se dado conta

da marca que acabara de deixar
em tua memória. é dos gatos deixar
marcas. quando não na pele (unhas

e dentes), no tempo. uma gata que
come seu filhote corre atrás do tempo
de estar livre para amar outra vez.
dos silêncios de elevador:
bonita a roupa nova repa
rei que a senhora anda a
batida ouvi os gritos e aj

udei chamando a polícia
esse cachorro ainda mat
a uma criança o senhor
viu a final do campeona

to? as portas que se abr
em e se fecham o bicho
que sobe e que desce o

dia inteiro boa noite vê
se descansa até amanh
ã até depois de amanh

é como sirene de ambulância, o arrep
io na espinha pensando se vai bem, s
e vai mal o acidentado - tomara que
sobreviva e que a dor não lhe seja tã

o má. é como vozerio de manisfesta
ção, alto-falantes, e o nó na gargant
a imediato como quando era criança
e aquela greve que havia eclodido (si

m, eu também estava lá). como a can
ção que descobri há dois dias de um
a banda agora desconhecida mas qu

e teve a sua audiência. é como a sau
dade guardada num frasco de perfum
e a que dou o nome de permanência.


yara beijava os meninos do bairro no
mato atrás do campinho de futebol a
trás do muro da escola no final da ru
a onde íamos de bicicleta. o único m

enino que a beijou dentro de sua cas
a fui eu assistindo a brinquedo assass
ino no momento de maior medo: sua
mão na minha, os dois abraçados. de

pois fomos descobertos teve telefone
ma de seu mário lá em casa e a proibi
ção de nunca mais beijar yara nunca m

ais tocá-la só ver eu ainda podia porq
ue seu mário jamais teria coragem de
me arrancar os olhos - e como eu a via.
às vezes os olhos entram antes p
ela porta invadem o que tiver aq
ui depois se fecham ou vão emb
ora - o que na matemática das c

coisas fica parecendo o mesmo. 
às vezes a noite avança e os cãe
s e gatos da noite fazem seus b
arulhos - cada um em sua vez p

ara não confundir ainda mais o
s insones. às vezes um poema é
inteiro a vontade de não dizer [

exatamente como este] o que n
ão tem que ser repetido. fica en
tre o dito e o não dito. entre o b
pode entrar - aqui ficam os livros mas
isso é tão evidente o que mais há aqu
i são livros e tem esses gatos e tem es
sas músicas e tem algumas histórias -

talvez essa te interesse mais, quem po
de saber - nessa foto sou eu nessa ou
tra sou outro eu que é no que dá mu
dar-se de si dia após dia: as fotos res

ultam imprecisas. pode entrar e tirar
as botinas. o que há de lama pode se
r atravessado descalço. se nos dermo

s as mãos talvez fique realmente mais
fácil. afundar, não afundaremos, que é
raso. e em teus olhos abunda coragem.
nunca mais a casa estará tão limpa:
meus dentes sujos de tártaro meus
olhos sujos de guerras meus livros
empoeirados - em brasília, dezeno

ve horas - e o pano de prato sujo
de vinho teus dentes sujos de vin
ho cantando legião urbana (quem
ainda faz isso?) antes de cessar a

chuva antes de a noite ser prome
ssa. nunca mais a casa estará tão
limpa porque aqui sentam-se poe

tas - e tu tiras poemas dos bolsos
os e os projetas para o alto. onde
cairão? sou alvo fácil, tão fácil.


sol depois de tanto tempo
- não dormi depois de tanto tempo -
hoje vamos à praia, à lagoa
hoje vamos todos à merda.

é dos poetas ter o umbigo
maior do que o cérebro?
por sorte letra de música
e poesia são coisas tão

diferentes. do contrário
onde eu estaria depois
desse sequência de A4,
A, D, D9, D9/C e G6, e

a letra de john ulhôa que
diz "fiquei com a pior parte
de tudo que é chamado
civilização"? hoje é sábado.
de menino, a casa vazia, trepava
no balcão da cozinha, ali ficava d
e pé, esticava os bracinhos pra ci
ma e alcançava o cigarro e o isq

ueiro do pai na estante voadora.
então descia, ia pro quintal e ace
ndia - a primeira baforada e a to
sse, a segunda e as lágrimas de n

icotina. devolvia o cigarro à estan
te, devolvia o isqueiro e me conv
encia de que nunca chegaria a se

r o pai. tampouco campeão, que e
ra a marca de cigarros que ele fum
ava, e em que eu nunca me tornaria.
as meninas dos correios e aquele
sorriso quando nossos olhares se cruzam
: ih, lá vem ele!

a moça do caixa da padaria que pensou
que eu tivesse morrido
- se apareceu é porque está vivo.

a dona da loja de artigos religiosos que me
diz todos os dias o mesmo Bom dia, querido!
como se amigos de muitos anos

tudo acontece sem planos entre as gentes
tudo acontece de novo e para sempre.
um telefonema no meio da tarde
(uma ligação de mais de vinte an
os) lembra aquele dia que fomos
no quarto das gurias? era noite o

u era dia? e como chegamos até
lá? isso não sei. tudo bem, já esc
revi aqui. e teve aquele dia que t
u andou pelo corredor com um e

dredom, saiu pela porta da frente
- disso não me lembro. rimos um
pouco e digo tchau, piá, te amo,

e me dizes pra eu me cuidar. por
que os homens não nos cuidam
os e sempre amamos em silêncio.
"CJ é o ramone que mais se divert
e no último concerto, depois morr
eriam quase todos; a minha janela
preferida e que mais me dá medo

é essa, a primeira da esquerda pa
ra a direita; uma vez caí de moto,
outra quase batemos num carro a

mais de 120 por hora. mas isso, cl
aro, foi antes" foi o que teria dito
se ela não poupasse palavras par

a me contar de sua vida, que flor
es plantou: coisas muito mais bo
nitas e muito mais importantes.
não está nas fotografias nem no
momento em que foram tiradas
tantos anos atrás que precisas d
e ajuda para fazer os cálculos, ta

mpouco está no momento post
erior às fotos, angústia de vê-la
s reveladas, anos empoeiradas
numa caixa e agora aqui, no teu

colo. não estava na câmera ou no
filme, não estava em ti ou em qu
em disparou a máquina. então q

uem sabe onde estará e onde est
ava aquilo que, é certo, perdeste
e que não trocarias por mais nada.
ontem vieram aqui meus amigos
(o encontro de pessoas que se sa
bem todas importantes é tão imp
ortante a elas como soa aqui na m

inha cabeça?). acordei tarde e fe
liz pensando em como fazer para
morar numa canção de melodia -
no exato momento em que ele vi

ra os olhos ao cantar super eu! su
per eu! deve ser como em toda o
bra: se começa pelas estacas. as c

anções começam por onde? melo
dia é morto faz tempo - como o t
empo passa. antes de tudo, estacas.
todo dia um pôr do sol
espetacular para que eu
me lembre de não olhar
pela janela: há um mundo

inteiro lá fora, há uma gata
morta lá fora - o som do
corpo contra calçada foi
como um estampido,

imagino, eu que nunca
fui afeito a tiros. será
sempre isso, todo dia

isso, todo outono, a
cada ano, uma coleção
incolor de faltas.
sonhei com meu pai e agora
a tarde seguirá com essa
sensação de que o homem
ainda está vivo.

perder o pai depois dos trinta
anos parece fazer parte do
misterioso ciclo perverso
da vida.

há uma semana, minha gata
caía da janela. impossível
distinguir o que é gente e
o que é bicho

diante da perda. diante da
perda restam a dor (que
se afina), a culpa (que é
sempre minha)

e as perguntas sobre a
vida e a morte, sobre a
previsão do tempo, qual
a melhor temperatura

da água para passar um
café para andré.
todo dia uma guerra nova a mesma
antiga e velha guerra: onde foi que
esconderam as câmeras da guerra
do golfo (luzes verdes no ecrã)?

ocride, fala pra mãe que aqui a
gente se entende torcendo pelos
mocinhos sempre, embora não
saibamos exatamente quem é

quem, quem contra quem, em
quem apostar nossas moedas.
onde foi que esconderam as
câmeras que filmaram os aviões

contra as torres gêmeas? as que
filmaram saddam? as que filmaram
gadafi? ocride, fala pra mãe que
dessa vez vamos pra cima - não

sabemos contra quem, não sabemos
pra cima de quem (agora que aprendemos
a dizer os nomes das coisas em dois
idiomas eslavos) - e haveremos de sair,

como sempre, vitoriosos.
de onde esse apego abstrato e logo
agora à despedida de teus amigos de
mais de vinte anos atrás um acidente
de moto em que vieste ao chão e saí

ste ileso umas noites brancas que nunca
terminavam e eram só pesadelo a cach
orra morta no portão de casa uma ame
aça de despejo os últimos suspiros de
 
teu pai. por que tudo isso se o que tens
pela frente é este sábado e esta vida
que tu mesmo plantaste num vaso de

apartamento, regados a amor e acolhim
ento. tu, quem diria, jardineiro de ti mes
mo. se tens de ir, apenas vai, vai, vai.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...