25 de nov. de 2023

em algum momento da tua infância
foste surpreendida pela cena insólita
da gata que havia acabado de parir
com a pata de um filhote na boca.

o excesso de amor, se poderia dizer
o excesso de cuidado, talvez (talvez)
ou somente se poderia dizer fome.
saciada, nem terá se dado conta

da marca que acabara de deixar
em tua memória. é dos gatos deixar
marcas. quando não na pele (unhas

e dentes), no tempo. uma gata que
come seu filhote corre atrás do tempo
de estar livre para amar outra vez.
dos silêncios de elevador:
bonita a roupa nova repa
rei que a senhora anda a
batida ouvi os gritos e aj

udei chamando a polícia
esse cachorro ainda mat
a uma criança o senhor
viu a final do campeona

to? as portas que se abr
em e se fecham o bicho
que sobe e que desce o

dia inteiro boa noite vê
se descansa até amanh
ã até depois de amanh

é como sirene de ambulância, o arrep
io na espinha pensando se vai bem, s
e vai mal o acidentado - tomara que
sobreviva e que a dor não lhe seja tã

o má. é como vozerio de manisfesta
ção, alto-falantes, e o nó na gargant
a imediato como quando era criança
e aquela greve que havia eclodido (si

m, eu também estava lá). como a can
ção que descobri há dois dias de um
a banda agora desconhecida mas qu

e teve a sua audiência. é como a sau
dade guardada num frasco de perfum
e a que dou o nome de permanência.


yara beijava os meninos do bairro no
mato atrás do campinho de futebol a
trás do muro da escola no final da ru
a onde íamos de bicicleta. o único m

enino que a beijou dentro de sua cas
a fui eu assistindo a brinquedo assass
ino no momento de maior medo: sua
mão na minha, os dois abraçados. de

pois fomos descobertos teve telefone
ma de seu mário lá em casa e a proibi
ção de nunca mais beijar yara nunca m

ais tocá-la só ver eu ainda podia porq
ue seu mário jamais teria coragem de
me arrancar os olhos - e como eu a via.
às vezes os olhos entram antes p
ela porta invadem o que tiver aq
ui depois se fecham ou vão emb
ora - o que na matemática das c

coisas fica parecendo o mesmo. 
às vezes a noite avança e os cãe
s e gatos da noite fazem seus b
arulhos - cada um em sua vez p

ara não confundir ainda mais o
s insones. às vezes um poema é
inteiro a vontade de não dizer [

exatamente como este] o que n
ão tem que ser repetido. fica en
tre o dito e o não dito. entre o b
pode entrar - aqui ficam os livros mas
isso é tão evidente o que mais há aqu
i são livros e tem esses gatos e tem es
sas músicas e tem algumas histórias -

talvez essa te interesse mais, quem po
de saber - nessa foto sou eu nessa ou
tra sou outro eu que é no que dá mu
dar-se de si dia após dia: as fotos res

ultam imprecisas. pode entrar e tirar
as botinas. o que há de lama pode se
r atravessado descalço. se nos dermo

s as mãos talvez fique realmente mais
fácil. afundar, não afundaremos, que é
raso. e em teus olhos abunda coragem.
nunca mais a casa estará tão limpa:
meus dentes sujos de tártaro meus
olhos sujos de guerras meus livros
empoeirados - em brasília, dezeno

ve horas - e o pano de prato sujo
de vinho teus dentes sujos de vin
ho cantando legião urbana (quem
ainda faz isso?) antes de cessar a

chuva antes de a noite ser prome
ssa. nunca mais a casa estará tão
limpa porque aqui sentam-se poe

tas - e tu tiras poemas dos bolsos
os e os projetas para o alto. onde
cairão? sou alvo fácil, tão fácil.


sol depois de tanto tempo
- não dormi depois de tanto tempo -
hoje vamos à praia, à lagoa
hoje vamos todos à merda.

é dos poetas ter o umbigo
maior do que o cérebro?
por sorte letra de música
e poesia são coisas tão

diferentes. do contrário
onde eu estaria depois
desse sequência de A4,
A, D, D9, D9/C e G6, e

a letra de john ulhôa que
diz "fiquei com a pior parte
de tudo que é chamado
civilização"? hoje é sábado.
de menino, a casa vazia, trepava
no balcão da cozinha, ali ficava d
e pé, esticava os bracinhos pra ci
ma e alcançava o cigarro e o isq

ueiro do pai na estante voadora.
então descia, ia pro quintal e ace
ndia - a primeira baforada e a to
sse, a segunda e as lágrimas de n

icotina. devolvia o cigarro à estan
te, devolvia o isqueiro e me conv
encia de que nunca chegaria a se

r o pai. tampouco campeão, que e
ra a marca de cigarros que ele fum
ava, e em que eu nunca me tornaria.
as meninas dos correios e aquele
sorriso quando nossos olhares se cruzam
: ih, lá vem ele!

a moça do caixa da padaria que pensou
que eu tivesse morrido
- se apareceu é porque está vivo.

a dona da loja de artigos religiosos que me
diz todos os dias o mesmo Bom dia, querido!
como se amigos de muitos anos

tudo acontece sem planos entre as gentes
tudo acontece de novo e para sempre.
um telefonema no meio da tarde
(uma ligação de mais de vinte an
os) lembra aquele dia que fomos
no quarto das gurias? era noite o

u era dia? e como chegamos até
lá? isso não sei. tudo bem, já esc
revi aqui. e teve aquele dia que t
u andou pelo corredor com um e

dredom, saiu pela porta da frente
- disso não me lembro. rimos um
pouco e digo tchau, piá, te amo,

e me dizes pra eu me cuidar. por
que os homens não nos cuidam
os e sempre amamos em silêncio.
"CJ é o ramone que mais se divert
e no último concerto, depois morr
eriam quase todos; a minha janela
preferida e que mais me dá medo

é essa, a primeira da esquerda pa
ra a direita; uma vez caí de moto,
outra quase batemos num carro a

mais de 120 por hora. mas isso, cl
aro, foi antes" foi o que teria dito
se ela não poupasse palavras par

a me contar de sua vida, que flor
es plantou: coisas muito mais bo
nitas e muito mais importantes.
não está nas fotografias nem no
momento em que foram tiradas
tantos anos atrás que precisas d
e ajuda para fazer os cálculos, ta

mpouco está no momento post
erior às fotos, angústia de vê-la
s reveladas, anos empoeiradas
numa caixa e agora aqui, no teu

colo. não estava na câmera ou no
filme, não estava em ti ou em qu
em disparou a máquina. então q

uem sabe onde estará e onde est
ava aquilo que, é certo, perdeste
e que não trocarias por mais nada.
ontem vieram aqui meus amigos
(o encontro de pessoas que se sa
bem todas importantes é tão imp
ortante a elas como soa aqui na m

inha cabeça?). acordei tarde e fe
liz pensando em como fazer para
morar numa canção de melodia -
no exato momento em que ele vi

ra os olhos ao cantar super eu! su
per eu! deve ser como em toda o
bra: se começa pelas estacas. as c

anções começam por onde? melo
dia é morto faz tempo - como o t
empo passa. antes de tudo, estacas.
todo dia um pôr do sol
espetacular para que eu
me lembre de não olhar
pela janela: há um mundo

inteiro lá fora, há uma gata
morta lá fora - o som do
corpo contra calçada foi
como um estampido,

imagino, eu que nunca
fui afeito a tiros. será
sempre isso, todo dia

isso, todo outono, a
cada ano, uma coleção
incolor de faltas.
sonhei com meu pai e agora
a tarde seguirá com essa
sensação de que o homem
ainda está vivo.

perder o pai depois dos trinta
anos parece fazer parte do
misterioso ciclo perverso
da vida.

há uma semana, minha gata
caía da janela. impossível
distinguir o que é gente e
o que é bicho

diante da perda. diante da
perda restam a dor (que
se afina), a culpa (que é
sempre minha)

e as perguntas sobre a
vida e a morte, sobre a
previsão do tempo, qual
a melhor temperatura

da água para passar um
café para andré.
todo dia uma guerra nova a mesma
antiga e velha guerra: onde foi que
esconderam as câmeras da guerra
do golfo (luzes verdes no ecrã)?

ocride, fala pra mãe que aqui a
gente se entende torcendo pelos
mocinhos sempre, embora não
saibamos exatamente quem é

quem, quem contra quem, em
quem apostar nossas moedas.
onde foi que esconderam as
câmeras que filmaram os aviões

contra as torres gêmeas? as que
filmaram saddam? as que filmaram
gadafi? ocride, fala pra mãe que
dessa vez vamos pra cima - não

sabemos contra quem, não sabemos
pra cima de quem (agora que aprendemos
a dizer os nomes das coisas em dois
idiomas eslavos) - e haveremos de sair,

como sempre, vitoriosos.
de onde esse apego abstrato e logo
agora à despedida de teus amigos de
mais de vinte anos atrás um acidente
de moto em que vieste ao chão e saí

ste ileso umas noites brancas que nunca
terminavam e eram só pesadelo a cach
orra morta no portão de casa uma ame
aça de despejo os últimos suspiros de
 
teu pai. por que tudo isso se o que tens
pela frente é este sábado e esta vida
que tu mesmo plantaste num vaso de

apartamento, regados a amor e acolhim
ento. tu, quem diria, jardineiro de ti mes
mo. se tens de ir, apenas vai, vai, vai.
deixa surgirem os dias e tuas fraquezas
de homem vão e triste enfeitado por
adornos que compraste a prazo no
cartão de crédito. deixa surgirem os

dias com seus arroubos para que
quando estiveres aí, perdido na
calmaria de uns dias tão bons de
pisar (e por eles ser pisado), possas

te recordar de que nem sempre foi
assim, de que nem sempre é assim
e possivelmente assim pouco será,

mas por agora deixa surgirem os
dias um atrás do outro, um por
cima do outro, e tu eternamente

entre eles.
residem no outono o amarelo
umas flores que logo desistirão
algum amor escondido debaixo
de tanto escombro um carinho

de pai e mãe um cãozinho de
estimação perdido na memória
os meninos brincando de bola
arrastando os pés no cimento

reside no outono um endereço
sempre recordado embora já
ninguém mais viva lá: rua de

quando éramos jovens e a vida
era larga, esquina com a estrada
de todas as invictas possibilidades.
o que mora na prudência
e no impulso, na verdade
e no insulto - ninguém
sabe o endereço dessa

demora. o que habita
entre a ciência e o
imaginado, entre o
certo e o almejado,

ninguém sabe quando
é hora. talvez ali
entre os ponteiros,

entre o estrondo dos
morteiros, nem mesmo
se dentro, se fora.
como debris destoa de destroços
bones não se quebram como ossos
: qual o ponto em que a palavra soa
àquilo que ela destrói?

corda no pescoço do enforcado,
kinzhal apunhalado no coração do fraco
: perestroika, pedia o russo para depois
assistir à grande queda.

se fôssemos ou se íssemos, a pedra
seguiria rolando abaixo e empurrada
acima com todos os nossos desejos
embalados a vácuo.
jair rodrigues canta disparada
em 1966, preto contra a claque,
oito quepes contra a claque,
nenhum amedrontando jair

(que tem ao lado o jovem chico,
filho de sérgio buarque de holanda,
professor de história para os de
quepe - péssimo professor, podemos

dizer). a plateia nada tímida goza e grita
aos dizeres do refrão: "porque gado a
gente marca, tange, ferra, engorda e mata,

mas com gente é diferente". jair rodrigues
canta disparada em 1966, canta hoje,
seguirá cantando, pois um hino é um hino

e não há nada que mude isso.
o pai e a mãe me diziam
pra nunca contar com o ovo
no cu da galinha,

o que quer dizer não criar
expectativas muito antes
do momento oportuno.

mas eu preferi ficar com
ayton senna, que comemorava
o primeiro lugar logo no

começo da última volta:
dedo em riste, galvão
cantando a vitória.

o pai e o senna já morreram.
hoje é domingo.
saudade é foda.
o pai já saberia de todos os jogos
porque teria arrumado uma tabela
(de onde?) os resultados anotados
pontualmente e depois as siglas
dos países que disputam as fases
finais. hoje jogam polônia e frança,
ele já saberia e faria uma cara de
dúvida virando assim o pescoço
ou faria um sinal com a mão querendo
dizer que - quando foi que o pai
perdeu a voz? - viria ali uma pelada,
porque disso o pai sabia, e de muitas
coisas mais, embora duvido que
soubesse onde fica o qatar, esse
país distante, coisa que com um
mapa-múndi uma projeção o
google maps eu resolveria ao
mostrar e dizer fica aqui, ó, perto
da arábia saudita. ele faria aquele
gesto de cabeça que queria dizer
entendi como queria dizer obrigado.
e se trouxéssemos a taça, então o pai
preencheria os dois últimos espaços
da tabela com um sorriso no rosto
ainda que eu não tenha certeza se
ele sabia escrever e tenha certeza
absoluta de que os mortos pouco
ou nada comemoram.
há poemas que crescem dentro
e não adianta procurar forma:
seguirão crescendo como hera
como figueira, as raízes destruindo

concreto. há poemas que, não
adianta, crescem sem que a gente
veja e nos pegam de rasteira, a
cara contra o concreto.

há poemas que vêm de fora, mas
esses lemos e fingimos atenção ou
guardamos num canto seco da
casa. os que crescem dentro matam

aos pouquinhos, aos pouquinhos,
e crescem até que matem mesmo
o concreto ainda líquido entrando
por todos os meus buracos.
quando néstor kirchner disse diante
dos milicos No tengo miedo, ni les
tengo miedo, quem sabe não fosse
a hora de os brasileiros exigirmos
 
também justiça - justiça, essa velha
abstrata - e não optarmos pelo de
sempre: um discurso dito por gravatas
engorduradas (de pastel de feira?,
 
não importa). é por isso que segui
mos assombrados pela risada óssea,
espontânea, bizarra de quem por

aqui fez tão bem o seu trabalho: saiu
ileso o desgraçado, e golbery não para
de rir rir rir rir rir rir rir da nossa cara.
o pai veio de canto pedir desculpas por
não saber falar de política - assunto de
homens, parecia - depois de ter visto
uma discussão entre eu e meu irmão.

disse a ele que tudo bem, pai, os olhos
marejados diante do homem - o pai
não sabe nada disso - e eu disse que
tudo bem, pai, a gente só tava falando

sobre esse país ir pra frente, um dia
sobre esse país ser grande, sobre as
pessoas se entenderem como povo

: mas elas têm vergonha de ser povo,
pai. elas têm vergonha de viver nesse
país e por isso fingem que vivem noutro.
dos pequenos redutos de tristeza

: quando fechei a porta para o pai
e a maldita era de vidro - o pai me
dizendo com o olhar para abrir e eu
me escondendo atrás das paredes da
casa

: quando perdi o aniversário de gabriel
porque na noite anterior tinha me
enfiado em tanto trago e tanta cocaína
que perdi a hora de cantar os parabéns
eu, o tio marcelo
 
: algum dia, como hoje, em que fiquei
com os pés molhados o dia inteiro
tentando encontrar vinícius, que foi
soldado, e também passou por isso

: cada um velório de cada um dos irmãos
da mãe em que para todos - para ela -
a vida era essa coisa inexplicável embora
também enguiçada embora também
extinguível

dos pequenos redutos de conforto

: escrever um poema sobre o que dói
sempre: aquilo de que não se escapa

: aquilo que se esconde sob o travesseiro.
não haverá castelo construído
sobre tanta areia sobre tantas
covas ocultas - de perus ao
araguaia não se erguerão casas

sólidas. antes, essa miragem
que é brasília; antes, os campos
de soja e de milho em cujos silos
os filhos desse país se afogam.

se há ou não esperança, o trem
já partiu e não importa o horário,
o trem terá sempre partido.

se há ou não esperança, os aviões
caem como jacas parrudas sobre
as cabeças sonhadoras dos pedestres.
o pai sabia beijar quando bebia
beijo lambuzado de cerveja e
aguardente, mais o que tinha para
ser dito e ficava entalado nalgum
canto da garganta (por acaso ali
o câncer, apenas por acaso), mas
depois aprendeu a beijar sóbrio
a abraçar e dizer que me amava
e eu beijava o pai na testa e na
bochecha, na têmpora e nas mãos
beijei vivo e beijei morto o homem
que me fez tão infeliz, que me fez
tão feliz: a somatória nunca é zero
para qualquer adversário: eu, que
queria um beijo, só mais um,
de feliz aniversário.
hoje já não estava lá a echarpe
que primeiro jazia no passeio e
 
depois foi atada à estrutura
de segurança como para
 
marcar o lugar da queda
como para dizer que foi

dali que ela saltou para
o infinito. houve quem

chorasse houve quem
como eu torcesse pelo

melhor. se ficar nesse
mundo que se acaba

se partir para
o nada.
miguel ligou pra polícia
pra pedir comida.

neste país, nenhum poema
é possível

e os poetas somos todos
uns criminosos.
quais imagens dirão este oco
com que palavras falar do va
zio em que esquina amarrar
essa angústia, esse frio. em
 
que memória esquecer o
guardado quantos dias já
que faz frio: tentar acertar
os passos, tentar esquecer

o fastio. por onde andam
os velhos amigos, quando
deixei de querer abraçá-los
: é do vazio se espalhar

redundante

por todos os lados.
ponhamos na boca do vento
o que afinal não temos coragem
de dizer

e esperemos o que se pode
esperar do vento: que levante
saias, brinque com as folhas

e sopre.
eu disse sobe e deve ter
soado a estou armado
deve ter soado a se não
me mato deve ter soado
muito mal quando eu
disse sobe e diante da
negativa nem pude dizer
que era pra subirmos
porque eu havia comprado
um café lá da tua terra
e queria saber se era tão
bom como o gosto que se
sente em ti.
não me procurem mais
amigos, inimigos, não me
procurem: chove como se
desde sempre, caminho
como se os primeiros passos
e olho as horas neste relógio
enguiçado à espera das 8
pílulas que às 8 da noite
engulo como se pedisse paz
- e a paz vem.

não me procurem com ofertas
de cafeína de cocaína de dopamina
porque já me lambuzei de açúcar
quando o que queria era beijar os
lábios grandes os lábios pequenos
os lábios da face de uma mulher
sem rosto de quem somente vi
fotos e de que também me esqueci.

não me procurem porque hoje
durmo cedo, como sempre
desde que a noite simulou
avisos de morte uma primeira
e uma última vez, porque escolhi
espargir para dizer que espargi
as cinzas de meu pai, porque
evitei dizer saudade para dizer
o que não tinha mais como.

não me procurem, por favor,
até amanhã ou ano que vem.






sejamos claros, sejamos óbvios
(há tanto de profundo nesse raso
que aparece) sejamos vívidos
sejamos lógicos - verdades sejam
ditas (cabem na palma da mão)
sejamos sólidos, sejamos límpidos

: os corpos que se entendam
estando com roupa ou não.
tá foda escrever um poema
que não seja ordinário sobre
como a semana demorou
sobre como os meses correm

poesia, eles dizem, é aquela
coisa de escola, de compadres
tá foda escrever um poema que
não seja pra meus três amigos

do peito. um poema só pra que
me digam poeta, apesar desse
lento-veloz do tempo. um poema
para beber com açúcar e sem drama.
quando o morto foi recolhido
(de tudo que poderia ter acontecido
(tão normal que foi
(como se tivéssemos praticado antes
foi preciso atravessar pela casa
e pelos obstáculos / as curvas /
as portas / a mesa de centro
imagino se o lençol tivesse arrebentado
se tivéssemos tropeçado
e o morto tivesse vindo ao chão
eu tomaria sua cabeça fria e meteria
em meu peito
pietà de caralhos, todos homens ali
como se coubesse aos homens
fazer desaparecer os mortos
que insistem em aparecer para
tomar o café da tarde
sem nenhum convite.
poema só para Claudia Lage

bonito mesmo é ver que por trás
do sorriso nas fotos havia muitos
outros, embora sorrir seja lá forma
de disfarçar tudo quanto se mantém

escondido em algum canto: eu ainda
velava meu pai morto enquanto os
mortos da casa de petrópolis não eram
ainda os mortos de petrópolis que
 
vimos ser soterrados ao vivo nos canais
de televisão. bonito mesmo é saber os
nomes dos teus como se os conhecesse
exatamente porque os levas contigo aonde

fores. seja em tlaquepaque, seja numa
capela incrustrada dentro do aeroporto
no panamá - onde quase consegui fumar
um cigarro. e quem diria - eu não - que

que haveria ainda um reencontro antes
de o ano acabar - vimos o arrigo, e que
coisa isso não querermos uma foto (a
memória sempre tão mais bonita), e
 
quando te disse vou ali fumar um cigarro
num canto do palácio, rimos novamente,
porque onde já se viu querer fumar dentro
de uma capela, embora em algum momento

deva ter sido comum, como comum também
foi matar pessoas, como é comum que elas
morram em nossos braços, como é comum
sorrir à larga apesar de tudo isso que aí está.
poema só para o Tiago Ferro

naqueles dias em que caminhamos por
guadalajara observando os fuzis da polícia
e os protestos e os prédios históricos
compramos lembranças no mercado público
enquanto velávamos nossos mortos mais
próximos enquanto eu dizia que fôssemos
ver o sítio arqueológico asteca. naqueles dias
em guadalajara em que tudo ficou tão claro:
vargas, perón, porfírio díaz, a mesma maldição
por todo lado, embora a simpatia das pessoas e a
comida apimentada (eu nunca paguei a senhora
que me serviu fora da hora da janta). e eu querendo
ver o sítio arqueológico asteca, embora tudo bem,
pois eu nunca tinha apertado a mão de um embaixador
e nunca tinha falado castelhano por tanto tempo
mesmo enquanto íamos a tlaquepaque ou enquanto
rumamos para chapala eu me perguntava quando
seria, e o vento, o vento me dizia que fôssemos
embora porque também invasores porque também
detratores. e eu, que queria visitar o sítio arqueológico
dos astecas fiz logo as malas, e se não te contei nada
disso foi porque faltou tempo ou porque as horas se
encavalaram umas sobre as outras, também os
minutos.
os pés rudes de meu pai nas havaianas
pisando com cuidado entre as tralhas
no meio da casa - o espanto - meus
pés rudes no meio da casa de havaianas
evitando os pregos, evitando as farpas.

a mãe desde muito nova sozinha num
mundo que, diz ela, era melhor, mas
não era. enfrentando a vida de foice
na mão para nos trazer à vida, eu,

o único filho, porque ligia é mãe também
quando me dá abrigo, quando me dá ouvidos,
porque vinicius é pai também, anotando meus
dados para o caso de qualquer perigo,

e tudo isso não cabe na fotografia dos cinco
no final dos anos oitenta - até ontem tida como
perdida, mas fixada na quina da parede da
sala de minha casa - os cinco sorrindo.
uma vez observando o eletricista
que chegou atrasado a loja toda
acesa tudo ligado pronto para
os clientes disse a ele que voltasse
amanhã não tem problema ele disse
eu dou jeito assim mesmo pode
deixar tudo ligado trinta anos de
profissão imagina se vou me danar
e eu ali sentado pensando que ele
devia saber o que fazia afinal eu
tenho medo de eletricidade mas
ele é eletricista que troca disjuntor
com a corrente acesa eu pensava
e de repente
RAIO!
na caixa de disjuntores o homem
mais branco que a luz branca daquela
sala se tremendo e hesitando o que
fazer com a chave de fenda eu
sentado pensando como deve ser
morrer como deve ser amar como
deve ser cair da janela

de repente como um raio.
vem, vladimir, traz de volta os tanques
mais antigo que uma guerra é uma
guerra travestida. não queremos mais
saber de bombas a menos que elas

caiam sobre a cabeça de árabes
a menos que elas caiam sobre as
casas dos farsi a menos que elas
matem crianças de cor a menos
 
que não matem gente branca,
vladimir. de olhos azuis e fé
em deus, vladimir! não tragas
à tona as prisões e seus torturadores,

que isso permitimos em guantánamo
em abu ghraib e nas delegacias de
polícia desse brasil juvenil pra frente
pra frente. menos teus tanques,

vladimir, porque a imprensa já anda
falando sobre o batalhão nazista
que matou tanta gente no donbass.
deixa disso, que o mundo não é mais

o mesmo ou o mundo é exatamente
o mesmo e as guerras não são mais
feitas somente de tanques e aviões.
as guerras são feitas de versões,

e os intérpretes só falam ucraniano,
e zelensky de tiririca posa de herói
sobre o teu retrato. porque a vida já
anda difícil e os preços e os refugiados.

volta atrás com teus tanques, vladimir,
e prepara uma festa silenciosa - logo
serão trinta anos do sumiço da bandeira
vermelha. com fogos silenciosos e de
 
tristeza, que também ninguém quer
atrapalhar o cotidiano dos cães.
.chibolete.

te dizer que venhas
me dizer que vens
por apenas óbvio e
não de outro jeito.

[te dizer água como
josé a pilar na epígrafe
do livro que sabíamos
ser o último dos últimos].

uma palavra para parar
a guerra e para iniciar
outras guerras, todas as
que ainda precisaremos

para viver em paz.

empunhai armas, camaradas!
porque ainda não estamos
prontos para a paz como ainda
não estamos prontos para a

palavra.
a rússia e a ucrânia
os estados unidos
e a grã-bretanha
a polônia e a lituânia
a frança e a alemanha

(ligam-se os motores)

no teatro mundial
a dramaturgia é boa
o que fode são os atores.
para lixar a tinta na janela posta
é preciso tirar o brilho - portanto
é preciso observar de diversos
ângulos com diversos olhos e
lixar novamente com outra lixa
e depois com outra e depois
limpar antes de passar a primeira
demão de tinta.
assim também a vida, assim também
o amor
mas as lixas sempre acabam e a tinta
é sempre pouca.
todo dia caio das sete quedas
que carlos cantou num poema
ressentido: os apagões dos
noventa mostraram que à toa
tanta destruição tanta malvadeza

primeiro caio de salto querido
embora nada ornamentado
procurando o fundo e acertando
a pedra

salto depois envolvido por um
amor paraguaio (te extraño,
querido) em papel celofane
e adereços diversos

caio também aos pedaços,
esquartejado por uma mulher
traída - se é dos homens,
eu também traio

outra vez, nadando descontraído
me deixo levar pela mesma corrente
que quase matou a mim e a juliana
numa praia de florianópolis

caio sorrindo

caio pensando em meu pai e seu
sorriso de poucos dentes, aquele
o verdadeiro sorriso

caio mas não caio, mergulho
já água por todos os lados, a bem
dizer fim do mundo, a bem dizer
fim das sete quedas

que conhecemos agora que itaipu
nos gera as ondas elétricas que
alimentam documentários tão mal
narrados em programas de televisão.
para Juliana Maffeis

me deixa nadar cachorrinho em paz
e eu nem te disse o que havia por trás
daquelas montanhas e mesmo quando
não demos pé e os salva-vidas ignoraram
cada segundo de nossa aflição foi tua mão
na minha e não sentimos frio quando
deixamos o mar

- viver faz esquentar -
 
tinha comida na geladeira e ainda tem
agora que sabes das paredes da minha casa
fica mais fácil dizer volta aqui dia desses
que temos tanto o que conversar
agora que conheces minhas gatas e as ruas
de que me guardo apesar de deixar o sol
fazer o que quiser de mim

me deixa nadar cachorrinho em paz
e agora temos uma história sobre o dia
em que quase morremos e as ondas não
deram trégua e a vida não dava trégua
e as coisas todas se empilhando para fogo
ser posto nelas enquanto a procura por
uma baía por um abraço fresco da água
para refrescar de tudo isso para nos limpar
de tudo isso

o dia em que quase morremos porque nos
esquecemos de que vaso ruim não quebra
e que há por diante mais do que os olhos
podem ver - tanto sol, tanto sol - e mais do
que os braços dão conta de abraçar porque
somente dois, porque apenas quatro.
o momento em que vitor ramil
grita antes do refrão de vento negro
no ao vivo de kleiton e kledir;

o momento em que rodolfo
abrantes fala palavras ininteligíveis
em carrão de dois no ao vivo mtv;

fernanda takai levantando a mão
que sangra e pedindo-implorando
vamo embora pra uma banda que
 
a ignora.

a poesia que reside na perda de
controle é a poesia que não será
nunca ignorada, tampouco

jogada fora.
te digo que te levantes
para que a queda valha
a pena: do alto o chão

é tão mais magnético.
levanta e anda, te digo
despido do tom profético

de quem sabe que a queda
virá - porque virá -, e se
insisto para que te ergas

e arreganhes os dentes
e cerres os punhos é porque
na derradeira hora de cair

na verdadeira hora de cair
não tenhas dúvida,
cairemos juntos.
vamos caminhar por todas as
ruas que não conhecemos en
quanto ainda é tempo enqua
nto existem ruas e temos per

nas para isso. depois, meu b
em, será tarde, o mundo aos
pandarecos, a velha guerra
recomeçando, o mundo afu

ndando logo estará debaixo
d'água. o mundo inteiro me
nos esta e aquela ilha - que

não se curvou e não se curv
a - e esta em que nos amam
os porque não permitiremos.
são muitas palavras jogadas fora
até o poema tornar-se exato são
muitos amores mal vividos até que
a carícia da eternidade são muitas

histórias mal contadas até que a
narrativa soe história são muitas
perdas equilibradas até que o
castelo da desatenção são muitas

fugas desesperadas até a calmaria
da solidão são muitos amigos se
despedindo até restar quase amigo

nenhum são muitas noites mal
dormidas até que enfim o sonho
bom são muitas vidas, muitas vidas.
quando voltar a guerra entre
os russos & os russos &
os russos & os russos
 
quando voltar a guerra
dos alemães dos italianos dos japoneses
contra os comunistas

quando voltar a guerra do ocidente
contra o oriente e a palestina
finalmente for livre

quando os curdos quando os turcos
quando os armênios quando os iraquianos
quando os líbios quando os sérvios quando

os sírios

nós já não estaremos vivos
porque teremos sido os que
acendemos o pavio desse barril

afundado em merda.
é do que fica nas bordas e nos
fundos das xícaras - vestígio ou
crosta de cafés passados contam
sobre nós tantas verdades e
 
escondem o que nos é mais claro
: que ali estivemos que ali estaremos
e que as xícaras já não são lavadas
a fim de contarem a história dos

cafés todos que tomamos enquanto
o mundo bem que se fodia. dos cafés
todos que tomamos dia após o outro

enquanto não vinha a noite enquanto
não amanhecia enquanto o mundo
bem que se fodia janela, mundo afora.
queria te dizer como rodrigo
me disse que me ama depois
de eu ter dito a ele que volta
e meia tenho vontade de mo

rrer e te contar como sinto fa
lta de estar aqui - realmente
aqui - quando a minha cabeç
a me leva longe até não ter m

ais volta. e te dizer que há o
mar e que amar é um vai e v
em vai e vem vai e vem e que

há males mares amares que n
em sempre ou quase nunca v
êm realmente para nosso bem.
aumentas o volume da tv o volume
da música (além deste limite pode
causar danos à audição) aumentas
o volume do jogo o volume da rua

(abres as janelas e o mundo invade
tua casa) aumentas o volume do vio
lão e cantas alto alto alto até as veias
te saltarem do pescoço aumentas

o volume com o aspirador com o
liquidificador o ventilador com a
batedeira aumentas o volume com

o modo centrífuga que faz dentro
de tua cabeça e ali encontras um
canto para teu próprio repouso.
talvez tu não te lembres porque
- ora!, há sempre tanto esqueci
mento há sempre tanta ocupaç
ão há sempre este mais do mes

mo modorrento (ontem mesm
o era setembro e o ano passou
voando sobre nós como um m
au agouro como uma nova tris

teza que se faz antiga) em que
sonhamos (por que não?) com
uns outros dias impossíveis. tal

vez tu não te lembres, mas se
te lembras, certamente não d
ormes à noite, também eu nã
meu pai teve três carros velhos
: um dodginho cuja história desconheço
mas de onde tenho uma memória bonita
(de pé no banco traseiro, ligia me segurando
o vento soprando liberdade)
; uma variant verde-abacate onde primeiro
aprendi a manobrar
(e que o pai fazia subir calçada quando estava
de porre e insistia que podia dirigir)
; um fiat prêmio branco - ou quase - que a
doença o impediu de dirigir e que fazia
o roteiro casa-boteco, boteco-casa.
também teve uma bicicleta azul.
quando morreu, depositamos seu corpo
na caminhonete da funerária.
meu pai também teve três filhos
mas esse é outro assunto e/ou não cabe
neste poema.
faz um dezembro já e quem diria
(a morte é uma senhora velha e
banguela que nos vai comendo
no dia a dia), já faz um ano das

nuvens de morfina, do sino que
badalava dando inveja às catedrais
faz um dezembro e quem diria
que à falta se acostuma como quem

leva um saco às costas, como quem
leva um pai nas costas, como quem
já não sente os pés sobre a brasa
viva, como quem sobrevive sobre

a vida.
talvez tu não soubesses e é de não
saber que vem a crença mas
paulo francis não falava daquele jeito
afetado
bêbado
tônica no meio dos períodos
frases que subiam e desciam
mas terminavam sempre em cima.

não sei como descobri, mas alguém
um dia disse
"paulo francis não falava assim"
então todas as notícias de nova iorque
perderam um pouco o sentido.

talvez falasse daquele jeito porque já
tivesse sigo cegado pelo som de caetano
(careta, quem é você?)

tivesse tardado um pouco a morrer
quem sabe se as torres gêmeas não
teriam ficado de pé
não teriam ficado com medo de serem
narradas daquele jeito que os meninos
ficávamos meio que sem entender.
[para Luísa Tavares]

a primeira vez que luísa
me perguntou por que eu
escrevia respondi que pra
ganhar dinheiro - isso foi

antes de eu comprar esse
apartamento com a grana
de um prêmio. a segunda
vez que me perguntou,
 
luísa - como quem soubesse
a verdade na minha língua -
disse que não precisava mentir
e por isso falei que porque

precisava, pra não explodir, pra
ser eterno, pra isso e praquilo.
publicar sim, publicar pra ganhar
dinheiro. mas escrever - luísa já

o sabia - era para dar um golpe
no golpe maior que me é a vida.
"obstacularizai", disse o profeta
de cima do monte.
"obstacularizai e vos rendeis",
complementou triunfantemente.

o último discurso tinha de ser
mesmo esse, ele disse: "entrai
no labirinto e vos perdeis:
não há saída possível", riu-se.

desde então os choques as agulhas
as carícias o olhar de pena.
desde então a procriação mecânica,

nada de amores. desde então
obedecemos ao profeta: nos
rendemos, humildes roedores.
o tratamento pode ajudar mas
essa doença não tem cura
o tratamento pode ajudar mas
essa doença não tem cura

o tratamento pode ajudar mas
essa doença não tem cura
o tratamento pode ajudar mas
essa doença não tem cura

o tratamento pode ajudar mas
essa doença não tem cura
o tratamento pode ajudar mas
 
essa doença não tem cura
o tratamento pode ajudar
o tratamento pode ajudar.
se apagares a luz então o o que
restará para além da penumbra
o que restará para além dos con
tornos o que restará com a luz

apagada se não aqueles fantasm
as tão antigos tão conhecidos c
ada um com sua morte cada um
com seus princípios se apagare

es a luz então tudo serão somb
ras tudo tão escuro impossível
tocar com os dedos impossível

enfrentar os medos mesmo qu
ando a vida chama impossível
enfrentar os medos escondido

embaixo da cama.
então era mentira que estiveste
em santiago naquele setembro
e depois - costa gavras filmou e
não apareces nem como figura

nte. imagino a vergonha: ver os
amigos tombando sob as botas
ver os amigos pedindo água pe
dindo terra sobre suas covas. qu

e terias feito para além do que f
izeste: escrever livros antes de m
orrer para alimentar tua família

que terias feito. decerto faria o m
esmo. decerto nos encontraremos.
te espero no méxico, roberto.
não pode ser amor se não
te fere não pode ser amor
se não te fode não pode s
e não te engole te tritura

te maltrata. não pode ser
amor se não te quebra se
não te verga se não te ab
ala. se não te descama s

e não te inflama se não
te queima também não
pode ser. como será en

tão que é se não te mor
de se não te sangra se n
ão te come numa colher.
em pleno século 21 as pessoas
morrem de fome as pessoas se
matam de tanto comer as pessoas
metem a mão na goela em pleno

século 21 as pessoas enriquecem
às custas da dor alheia as pessoas
engolem o choro logo de manhã
as pessoas sofrem em pleno século

21 as mesmas guerras são lutadas
as mesmas guerras são perdidas
e nós ainda morreremos todos,
de dia, em pleno século 21.
um poema para o Caio Augusto Leite

o sol não mereceu tua visita
embora o vento frio tenha
nos lambido os cabelos numa
manhã que entardeceu inverno

e o mar: faz-se outro porque
te tem de pés e alma, nesse
encontro curioso de amigos
que não se viam há muito tempo.

aqui faz casa vazia, embora eu
esteja dentro dela olhando uma
parte que falta; pela janela (que

tantas vezes me segurou do salto)
há este olhar que de sobressalto
não faz mais que esperar a tua volta.
um pássaro ao chão
mais um
mais outro
e o aeroporto não fecha
e os aviões continuam a
decolar
- teto baixo -
difícil que é conhecer o mar
a bordo de um submarino.
i.
a ingenuidade dos passos das crianças
a beleza ignorada dos ratos do centro
até aqui vinha o mar, digo para as visitas
eu só venho até aqui, digo para mim mesmo

ii.
os edifícios todos se parecem vistos de baixo
a dança das crianças de mãos dadas com as mães
toda semana muda quem entrega prospecto de dentista
o mar agora está lá atrás, sussurra o aterro no meu ouvido
 
iii.
as crianças que atravessam sem olhar para os dois lados
os ratos e os prédios se alimentando uns dos outros
o mar um dia toma tudo de volta, digo olhando no espelho
eu já vim até aqui, e tenho força para ir adiante.
dos anos oitenta restou essa
esperança junto de saudade
nenhuma da hiperinflação

dos noventa: a falta do pai,
o primeiro porre, paixão pela
menina da oitava série

nos dois mil acabou-se o mundo
acabou e recomeçou tantas
vezes, nunca entendi direito

década de 10: estar sóbrio,
estar vivo, escrever uns livros,
alimentar as gatas

década de 20: o que será
o que será o que será o q
ue será o que será o que
olha ao teu lado e vê quem
caminha contigo
mesmo que erres o passo
mesmo que erres
palavras

chove sobre metade do país
e é essa a notícia para hoje

: enquanto não vêm, os fantasmas
assombram sempre mais do que
quando sentam à mesa conosco.
se paula toller não tivesse
composto meus oito anos
talvez nando reis deixasse
de compor o mundo é bão,

sebastião,

e certamente - certamente! -
não haveria esse poema como
tentativa de assobio num dia
tão cinza e gravemente tão

tarde.
i.
no fim os domingos não eram ruins
ou porque nos desacostumamos ao
tédio ou porque aprendemos com o rock
dos anos 80 um monte de besteiras
que precisamos repetir nos 90 - ou
outra coisa ainda, não sei bem,
mas os domingos não eram tão ruins
(ainda não são) embora o terror venha
se consumando e me consumindo com
o passar lento das horas [pra quê tanto
dia num dia só?] ou porque me lembre
de um tempo que não sei se houve mas
se tiver havido que falta faz!, mesmo que
calendário algum mesmo que bilhete
algum rememore um dia tão besta tão
inerte e dolorido - domingo - dia tão
pouco digno de nota.

ii.
ontem fui ver o mar e quase disse
àquele homem brincando com o filho
que sorte têm, ele e o menino
iii.
outro dia cheirei o perfume de alfredo
e foi como se trouxesse meu pai para
bem dentro dos meus pulmões.
olha acima: é lá que habitas
olha pra baixo e verás tua
casa - preso entre paredes
e aerado como nuvem pesada

(por quantos anos essa subida
íngreme e esse declive veloz e
com frio na barriga. quantos
anos de escadas e quedas
 
estradas pavimentadas e
trilha entre as macegas) não
estás sozinho, porém. olha

os comprimidinhos que te
acenam, ouve o relógio que
apita, sente a calmaria também.
o que há por trás do teu
dia que não seja noite apenas
haverão horas amenas por
trás do que é o certo e do que

é o esperado? se não mentem,
o que há mais por trás de tuas
lentes e não pode ser alcançado
- olhos que olham outros olhos
 
entre embriagados e fugitivos
entre receosos e prestativos -
entre um piscar e outro ainda

continuam ali, me olhando, porque
é dia, porque faz inverno, apesar do
inverno, apesar da tela fria.
mantém distância do que
é sugestão e inviabilidade
: o amor, a morte

abraça com força tudo em
que tropeçares, solidão e
sorte

caminha, cabeça erguida,
à procura de norte algum
(posto que mutável e transitório)

acha lugar para ti naquela
caixa de fotos, já que não sais
dela, já que não sais de ti.
.tratamento.

dia sim dia não
o degrau desaparece
ou o pé com muita
força não encontra
o piso onde deveria

dia sim dia também
apertem os cintos
senhoras e senhores
começa aqui o trem
fantasma a montanha
russa não para nunca

dia sim dia não a moça
me pergunta como anda
minha vontade de morrer
e lhe respondo quem quer
mesmo viver nesse mundo

desgraçado?
(o assento era engatado no
guidom em sua parte anterior,
ou seja, o menino ia virado para
o pai, de costas para o caminho

: não via o pai, mas seus braços
sua barriga, suas pernas. talvez
gotejasse suor sobre o menino
talvez o caminho não importasse

tanto). o pai me dizia Não olha pra
trás que a gente cai. pra trás: pra
frente, na verdade, porque o menino

ia de costas. mas eu olhava.
rapidamente eu olhava o caminho
e depois o homem que por ele me

levava.
de silêncio em silêncio se faz
uma continuidade de rasura
em rasura se faz uma história

(alguém aponte o dedo contra
lutero, o antissemita defensor
de elites; alguém aponte o dedo

contra os filhos de pedro, as luvas
que cobriam as mãos sujas de
pio xii, a cara de santo de joão
 
paulo). em algum momento lá
atrás, em algum momento antes
de ontem. daí agora anda no

mato saudando os caboclos,
acende vela pras almas, olha no
horizonte e grita Epa babá, meu pai

Odoiá, minha mãezinha. como assim
tem Nanã na mão direita e Iansã
na esquerda? de silêncio violento

se faz uma estirpe, de rasuras
grosseiras se faz um original
: Laroyê, seu Pinga-Fogo, vela

vermelha ante a semana. das
cores todas que se apagam
o amor não é uma delas.
não vou entrar disse ele dentro
porque a porta está trancada
porque as janelas as janelas
tampouco há saída pelo forro

(nesse castelo de cartas eu sou
o ar entre as cartas e tu és a
gravidade, veja só como tudo
desmorona tão rápido, tão fácil,

que dá até gosto ver acontecer)
[embaralham-se enlaçam-se
se enozam tão bonito, bonitos]
só é possível saber pela fresta

por onde também entra uma
nesga de luz.
te querer como quem admira um
banheiro limpo sem traços de
presença humana que seja o branco
do cloro - as vias aéreas docemente

queimadas, também na língua o gosto
do que é desinfetante e pureza. te querer
como quem admira o papel intacto onde
poema algum anotação alguma jamais

caberia porque é de querer que falo
: tudo que precede a vida a experiência
o toque de mãos o resvalar de corpos

(suores trocados, gostos, gozos, gemidos)
te querer como quem sabe que a hora
certa vai chegar, e que chegarás com ela.
deve haver lugar para este corpo
que não seja longe da cabeça que
quer sair sozinha por aí conhecer
os sete mares os cinco continentes
as galáxias todas porque ouviu com
estes ouvidos que são bilhões ou
o pantanal, com que sonha desde
menina quando aquela coleção de
figurinhas do chiclete ping pong
- mas -
deve haver lugar para este corpo
que não seja longe da cabeça que
é uma, logo outra, mais outra ainda
e que espera o lítio, a sertralina, a
risperidona, o diazepínico. deve haver
um lugar branco limpo clínico em que
se dão bem em que andam a passos
contíguos em que se abraçam em que
não se pretendem tão longe em que
não se odeiam até quase se amam
poderíamos dizer
o desdém diante das cruzes
foi a mãe ou foi o pai quem
construiu a capelinha? tão
jovens e nessa rodovia que

inauguraram antes de ontem.
tsc tsc tsc tsc tsc a cabeça
acompanha os movimentos
da língua. talvez amanhã pare

para ler os nomes. ninguém
merece morrer tão cedo e
fazer sofrer os pais. a mãe

é quem coloca as flores.
amanhã, se tudo der certo,
acendo uma vela pra eles.
um edifício é erguido
naturalmente de baixo
para cima

(porém, meu bem)

é de cima para baixo
que se conhece um
prédio em construção

desde o concreto fresco
desde o tijolo tosco
até as paredes o reboco
as lâmpadas a porcelana
e um apartamento modelo
feito propositalmente para
que possíveis compradores
sintam-se melhores pessoas
famílias felizes
amantes amentes
e a coisa toda

mas um edifício é uma
porção de ferro concreto
tijolos canos de cobre
eletrodutos canos de plástico
e o diabo
e todo resto que se imagina ali
é o que se imagina ali entre coisas
escondidas nas paredes
sobre estacas que feriram fundo
a terra.

.risperidona.

deixa a tarde cair deixa
o dia findar não é porque
se encerra a tarde que
terminarás como ela.

deixa a noite surgir
deixa a cabeça acalmar
- talvez sonhes essa
noite como sonhaste
 
na última. o dia inteiro
esteve cinza mas
quando chumbo pesa
 
mais. as horas uma
atrás da outra não se
perguntam aonde vais

(e assim mesmo caminhas).
a louça limpa na pia como
se a casa esperasse visita c
omo se eu esperasse que
entrasses aqui, tu e minha

família para um almoço de
domingo. a casa organizad
a para receber quem não v
em - porque a estrada, a es

trada. a cama arrumada co
mo se fosse receber corpo
s. o som ligado como se p

ara dançarmos. eu que nã
o sei dançar, eu que moro
no sofá porque ali não há

o outro lado da cama.
há no outono essa luz
as manhãs manhosamente frias
o encurtamento aceitável dos dias
e algum conforto
 
(ergue-se uma cidade inteira de mortos
de sotaques e bandeiras distintos
- diz o jornal, dizem as pessoas cautelosas
e de resto resta o silêncio furioso dos enlutados)

mas há no outono essa luz
esse frio que não fere
esses dias que não agridem
e o refúgio cretino do poema

atrás do qual se escondem os covardes.
alternar o poema entre
as mãos arremessar pa
ra cima como se molho
de chaves fosse guarda

r no bolso e esquecê-lo
ali para reencontrar no
metal da máquina de la
var, irreconhecível. atira

r longe como se faz com
as guimbas de cigarro m
irar na lixeira no bueiro e

perder o poema na sarje
ta como o que realment
e é: efêmero, inútil.
sempre outono sempre
acordar cedo para acom
panhar os adultos no cu
lto de páscoa - sempre f
ez frio no vale essa époc
a do ano - e tentar enten
der a morte e a ressurrei
ção de jesus que nem be
m havia nascido direito
natal foi antes de ontem
e bater quem sabe os pe
zinhos no chão da igreja
ansioso pelo que viria:
pegadas pela casa marc
adas com giz de quadro
apontavam a direção: li
gia assistia vinicius assi
stia o pai também a mã
e na cozinha preparand
o almoço de domingo e
e eu de lado pro outro p
rocurando a cestinha em
cada canto perdendo a
inocência em cada canto.

era tão bonito.
abre as janelas para que
saia o ar refrigerado arti
ficialmente, escape pelas
frestas. abre a janela por
que o vento vem do sul
prometendo limpeza e
renovação melancolia e
saudade frio de outono
e fotografias com aquel
a luz em fim de tarde. a
bre as janelas porque o
vento vem do sul e vem
com força e traz notícias
que não compreendes
ainda. abre as janelas pa
ra que o vento te limpe
de ti mesmo. abre, abre
as janelas. é seguro, ago
ra. já não voarás por elas.
como destruir uma máquina
ou talvez nunca te esqueças
das noites a fio acordado en
tre o canudo e o copo entre

a fissura e o efeito entre vol
tar para casa ou permanece
r. como destruir uma máqui
na ou nunca aprendeste a li

dar com a culpa ou nunca li
daste bem com tantos cigar
ros - um atrás do outro - qu

e são uma forma de suspira
r, dizia quintana, ou apenas
uma forma sutil de morrer.
como consertar uma máquina
ou talvez não te recordes teu
nome por inteiro. talvez te fal

te espelho onde te identificar
es, um colo onde deitares teu
s pensamentos, um olhar alhe

io que te sirva de reflexo. com
o consertar uma máquina ou a
ceitar o que não tem conserto

humano que és e te esqueces
te humano que és e já não sa
bes humano que és e ainda vi

ves.
chega uma hora não é mais sau
dade é aconchego de travesseiro
quente é abrigo duma chuva muita
é entrar em casa e sentar-se no

sofá. chega uma hora não é mai
s saudade é aquela macarronad
a que a mãe fazia é receber a vi
sita de lígia e conversar sobre t

udo com vinicius em chamada d
e vídeo: como estão as crianças
como foi que o brasil entrou na

guerra. chega uma hora não é m
ais saudade, entendo, mas por fa
lta de nome melhor, saudade con

tinua sendo.
manual de como derrubar uma parede

1. queira muito.

2. imagine a amplidão do espaço, veja além, ignore o concreto.

3. com uma talhadeira e um martelo, descasque o reboco à procura da viga - não toque nessa parte. tudo que não for viga pode ser removido.
obs: é no reboco, e não nos tijolos, que estão guardadas as lembranças; é no reboco que ficam os ouvidos das paredes.

4. com uma furadeira, faça o jogo de liga-pontos nas medidas da parede a ser derrubada. adentre a parede com a broca e veja o que sai dali. uma casa é um punhado de tijolos e argamassa bem montados. somente um lar sangra, uma casa não. e, mesmo assim, sangra por outras vias, não por buracos feitos na parede.

5. una os pontos com uma talhadeira. agora não serão mais pontos, serão riscos. e o risco, aqui, começa a ficar alto.

6. entre o que for ficar e o que for sair, ponha delicadeza. é preciso precaver-se contra o impulso de querer ver tudo abaixo.

7. já devidamente marcada a área que se quer extinta, é preciso empunhar a marreta com apego e força; não se trata mais de derrubar a parede, trata-se de bem outra coisa, como se cada golpe tivesse um nome, uma data, um rosto.

8. terminada a derrubada, é preciso recolher os destroços. para isso é preciso saber empunhar uma pá de recolhimento. aprendi com meu pai a recolher destroços, coisa que já não é mais possível - vocês não poderão mais conhecê-lo -, mas em resumo: é preciso ter a inclinação certa, é preciso ter o impulso certo para a frente, é preciso parar de forma abrupta esse impulso (a pá está cheia), é preciso saber guiar com o cabo até onde os dejetos serão depositados.

9. é preciso aparar as arestas, juntar os cacos, olhar atrás do armário, embaixo da cama: sempre sobram vestígios.

10. é preciso acostumar-se com a falta que a parede faz quando não está ali. porque já esteve, mesmo que não pareça. talvez já tenha estado, mesmo que não se lembre. algum dia houve uma parede aqui?
(poema só pra Juliana Maffeis)

a gente se perguntando
cadê as gurias se tão no
bar ainda se vão chegar

ainda se mesmo existem
cadê as gurias? como se
houvesse noite como se

houvesse vida mas é tudo
tão morno nesses tempos
que talvez as gurias nem
 
estejam aí, pela volta, talvez
nem existam as gurias. eu
quebrei a parede para ver

se te encontrava do outro
lado, mas só havia o outro
lado e essa saudade filha da

puta de ti numa noite quente
em porto alegre quando falamos
sobre cadê as gurias, e elas

tavam vindo e nos sentamos
todos à mesa, tu, eu, as gurias,
sem nem saber que o que viria

pela frente seria tão ou mais
grave que. derrubei a parede
a marretadas porque o peito já

anda fraco de tanta falta e se
me pergunto cadê as gurias eu
me pergunto cadê tu, cadê eu

onde foi que a gente veio parar.
Quando Jean-Paul Sartre
morreu - depois de recusar
o prêmio nobel de literatura -
em 1980 já ninguém se lembrava

que

Lê Đức Thọ recusou o nobel
da paz que receberia junto
de Henry Kissinger, em 1973.
Menachem Begin recebeu o

prêmio em 1978 - apesar de
Israel ter lavado as mãos diante
dos massacres de Sabra e Chatila -
junto de Anwar Al Sadat, o egípcio

que abraçou Jimmy Carter, nobel
da paz em 2002 (Jimmy foi quem
entendeu que era necessário derrubar
as ditaduras na América Latina pois

aqui havia muitas armas e já ninguém
precisava de um novo Vietnã). Arafat,
Rabin e Peres receberam o nobel da
paz em 1994 - o primeiro vendeu a
 
Palestina, os outros dois a queriam
destruída (não mais que Netanyahu,
filho destes três). Barack Obama
recebeu o nobel da paz em 2009

- yes we can realizar mais de 26 mil
bombardeios somente em um ano
(quem conta os civis? quem conta?).
Juan Manuel Santos recebeu o prêmio

em 2016 pelo acordo de paz entre
o Estado e os militares das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia
(somente um lado depôs armas e os

mortos contam-se às dezenas).
A paz é um buraco fundo cheio
de corpos cobertos de cal. E Sartre
só recusou seu prêmio porque era

ainda mais vaidoso que aqueles
que aceitaram recebê-lo.
não é que não aconteceu nada
nos noventa porque na música
os raimundos e chico science e
os melhores álbuns de titãs e e
ngenheiros e legião urbana e n
a política fhc comprando votos
para a reeleição e o mst toman
do tudo derrubando cada cerc
a com amor e com fome tamb
ém tinham fome os meninos d
a candelária e os assassinados
de eldorado de carajás o pai s
aiu de casa nessa década eu s
aí de casa nessa década quan
do as torres gêmeas ainda est
avam de pé quando o muro d
e berlim ainda ruía aos pouco
s para então gritarmos é tetra
é tetra é tetra ou ouvirmos se
nna bateu forte morreu ayrton
senna da silva a notícia que nó
s nunca gostaríamos de dar e
também morreu renato russo
e também morreram os mamo
nas e também morreu doutor
ulysses e sei lá mais quem não
é que não tenha acontecido nad
a de importante nos noventa m
as ô decadazinha de merda.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...