23 de jan. de 2020

[pra Juliana]

porque não me constestas, não te
procuro - visualizaste, não respon-
deste - porque não te marquei e não
me marcaste, ou porque me escondi

e te escondeste. porque não me
chamaste, não te chamei, e a tarde
reclama, como um cacoete, que me
digas se vai tudo bem, ou se tudo foi

pro cacete. na etiqueta das relações,
reclamo que irmos devagarinho
é água fria sobre as tentações -

ou, por outro lado, estava certo o ve-
lhinho que denunciava as armações
: bauman nos bebe de canudinho.
o pai nunca deixou faltar
nada em casa, apenas o
pai: havia comida, luz,
telefone, água encanada

e o muro de arrimo para
deter o ribeirão, "mais de
mil sacos de cimento", ele
dizia quando ainda falava.

o homem por trás da casa
trabalhava à noite na fábri-
ca, de manhã na roça, e se

esvaía entre a cachaça e a
carroça. o pai nunca deixou
faltar nada, apenas o pai.
(a vocês e quem mais)
os meus amigos escrevem a prosa
e a poesia de sua geração, e são
brilhantes, tão importantes, meus
amigos são tão inteligentes e tão

solitários. meus amigos escrevem
contos e poemas, também contam
moedas, como eu, meus amigos
chafurdam na lama e comem restos.

meus amigos escrevem tão bem,
leem tão bem, meus amigos são
tão importantes, mas tão solitários,

e moramos longe. meus amigos
sempre se alegram diante de notícias
boas, ainda que elas rareiem, é fato.
estou em casa, trabalhando,
calçando meus tênis novos
para que me acostume a
usar tênis novos - o menino

pobre que eu fui se assustava
com o que era novo, porque
o corpo era velho, era sujo da
rua, o corpo não suportava a

brancura do novo, o cheiro do
novo. o homem pobre que eu
sou, no entanto, calça tênis

novos enquanto trabalha em
casa - acostumar-se muda
com o tempo, mas não.
poema retirado de uma notícia de jornal em 2020
no fim do protesto, manifestantes
viraram lixeiras e atiraram pedras
nos policiais, que reagiram usando
cassetetes, torniquetes e bombas
de gás. os manifestantes fugiram
pelas ruas do centro antigo, e foram
perseguidos. por alguns minutos,
interromperam o happy hour em
barzinhos, que estavam lotados
por volta das 20 horas.
talvez depois, quando te olhares
no espelho e te reconheceres nos
traços dos teus, vindo de onde vi-
este, caminhante dos caminhos

onde teus pés, aquele e este, pisa-
ram a terra, a grama, a areia mo-
lhada da praia. talvez depois, quan-
do tiveres despertado, quando tiveres

te abraçado tantas vezes que já
terá se tornado natural o caminho
das mãos. talvez depois que os

dias tiverem passado (neste e nou-
tros calendários) é que então...
talvez depois. agora, não.
sentes mais fundo às terças
e às sextas-feiras, como se
as tardes só terminassem no
começo novo da manhã.

sentes mais forte quando
das 7 às 7 e meia preparas
teu café e admiras a parede
: prometeste colar ali um

retrato para te fazer companhia.
pensas que podes então
finalmente conhecer-te

ao te perguntares se amor
é o que sentes pesar no peito
ou aquilo a que te acostumaste.
é mais fácil quando admites que
não choras sozinho, não caminhas
sozinho - há sempre um quê de luz
iluminando teus passos, e não adivi-

nhas de onde vem. é mais fácil quando
divides o peso e o carregamos juntos
: fardos são fardos - como canções são
lembranças recuperadas diante da por-

ta do elevador. é mais fácil quando divi-
des o riso e compartilhas o abraço. é
mais fácil quando, diante da cidade,

admites as curvas da baía, as arestas
da serra longínqua, as dobras das
marés - e admites sentir saudade.
febre ainda ou já podemos esvaziar
o mercúrio dos termômetros e servi-lo
em copos coloridos para brindar nossas
derrotas todas?

febre ainda ou os calafrios e esse
ranger de dentes são palavras que ainda
não foram ditas (nem serão) tampouco escritas
num poema veloz e sem capricho?

febre ou não, que avanços da medicina
nos colocam à altura das decisões de
um corpo que pouco nos pertence?

febre ou não, o sábado e o domingo
ficaram escondidos sob o tapete, como
convém aos micróbios e aos covardes.
[para os 69 de seo alfredo]

aprendemos a falar de amor faz pouco
(o espanto diante da ausência agita as
palavras e a importância de dizê-las)
mas depois o pai perdeu a voz e tudo
que comunica.

antes dele perder a audição ouvíamos
música juntos - o mesmo zezé di camargo
& luciano, o mesmo leandro & leonardo
- e eu nunca perguntei qual era sua canção
preferida

para que hoje, seu aniversário, eu pudesse
cantá-la baixinho enquanto abraço uma
saudade, enquanto abraço o pai e o menino
que fui (nos braços do pai) como naquela
fotografia

em que eu chorava, ele sorria.
É preciso matar o poema
ao terminar de escrevê-lo
e terminar de escrevê-lo
e terminar de matá-lo
porque morrer leva tempo
(resistem tanto ao fim,
homem e poema,
que chegamos a duvidar
de último suspiro
cantos dos anjos,
céus, eternidades)
e como golpe final
oferecemos apenas
lhe fechar os olhos
e despedirmo-nos
sem saudade.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...