22 de jan. de 2021

é sobre não ter alguém para tomar
café preto e observar pássaros enq
uanto o cigarro queima lentamente
é sobre não ter alguém para dividir

silêncios olhares suspiros sorrisos e
sgares ou tranquilezas verdades ou
incertezas obscuridades ou clarezas
que me acometem no meio da tard

e é sobre não ter alguém para beija
r o pescoço sem pudor algum algué
m para amar como se para além do

que vai aqui posto. este não é mais
um poema sobre meu pai morto m
as poderia ser, poderia ser também.
como é pesado carregar
um museu nas costas como
é difícil carregar o morto
nas costas como é estranho

o caminho que se faz com
peso nas costas - meio pra
cá, meio pra lá, como se
bêbado, mas não; os joelhos

que aguentem a coluna
que se esforce os ombros
que suportem e a cabeça
saiba sempre pra onde mirar

venha ver o grande museu
de sutilezas a entrada é grátis
limpe os pés antes de entrar
e fique à vontade, por favor.
"I wish I could eat / Your cancer when you turn black"
Kurt Cobain

a primeira vez que vi sua nudez
foi numa noite difícil no isolamento
do hospital - também foi quando dei
a ele meus passos para alcançar
o banheiro na madrugada foi também
quando me impressionei com as ampolas
de coleta de sangue arterial

- tudo tão rápido - 

depois tomamos banho juntos: limpa
aqui o pirulito, levanta o braço preu
limpar o sovaco, também as pernas
as unhas cortadas, aparar a barba
tirar da volta dos olhos a ramela
para que eles brilhassem somente
azuis

- tudo tão limpo - 

os chinelos alinhados ao andador
o relógio marcando as horas sempre
em ponto a morfina das 7 das 11 das
15 das 19 das 23 o criado mudo na
primeira gaveta cigarros na segunda
gaveta dinheiro na terceira os papeis
que trouxe comigo

- tudo tão certo - 

depois do último suspiro (mais um,
mais outro) depois do erro nos aparelhos
feitos para medirem a pressão arterial
dos vivos, depois dos beijos todos que
dei no morto, de sentir seu calor ainda
sentir o que havia de vida ainda foi que
abri sua boca para ver o buraco no céu
da boca [desse tamanho] maior que um
tiro dado no céu da boca maior
que um tiro dado para se libertar da dor
de morrer aos poucos

- tudo tão morto - 

e agora isso: o filho que procura o pai
morto que encontrou o pai ainda vivo
que encontrou o pai quase se indo
e que disse Pode ir, pai, que aqui
nos cuidaremos todos, Pode ir, pai,
que aqui nos abraçaremos e nos
vigiaremos para que não nos
aconteça tomar um tiro na boca
cuja explosão não mata na hora
e faz a vida pesada e pouca

- tudo tão nó, tão nó, tão nó -

que pra isso nunca faltou corda.
carreguei o pai desmaiado até o quarto
puxando-o pelos pés sobre um
tapete encardido era tão pesado
que o arrasto tirava lascas do

piso. depois carreguei-o doente
do quarto à varanda e dali à
cozinha. a cadeira de rodas tirava
lascas da parede que se amontoavam

sob as rodas de borracha. depois ainda
o carreguei sobre o lençol do quarto
à sala para dentro da caixa da funerária
para que que montassem o boneco

de cera que exporiam no velório
: velas acesas e deus nenhum.

depois o carreguei dentro do ataúde
no espaço curto do carro à capela
da capela ao carro. o pai cada vez

mais magro cada vez mais magro
cada vez mais cada vez mais cada
vez cada vez mais magro cada vez

mais magro cada vez pesava mais.
quando senna bateu forte
estávamos em curitiba os
meninos no quarto jogan
do video game os adulto

s na sala acompanhando
o ocorrido a prima veio d
izer o senna tá mal no ho
spital e depois cabrini an

unciou o fim, a notícia qu
e nós nunca gostaríamos
de dar. o pai nem aí, leva

va consigo outra dor, da
perda do próprio pai, e eu
aqui me pergunto quant

o tempo demora.
edu barreto me disse que
os pais continuam na gente através
do que vemos pensei de que forma

veria o mundo se não tenho os olhos
de alfredo, os olhos azuis de alfredo
e se faria sentido o que eu tivesse

visto. até hoje. 

porque hoje eu vi o mar
e ele era tão azul tão azul

quase meu pai a me dizer
: de salgada basta essa água
guarda tuas lágrimas pra ti
pra hora mais oportuna

porque a vida somente
acaba. porque a vida
também continua.
o homem morreu em meus braços
como quem descansa como quem
exausto dispensa água ajuda abraço
o homem morreu em meus braços

mas antes olhou as horas no relógio
de pulso; operário, sabia do valor
de um dia útil para si e para os seus
não morreu dormindo, porém, mas

desperto, entre o sábado e o domingo
(quando finalmente o esperado
descanso). voou antes que eu lhe

dissesse Voa, pai, que o céu é grande
e também a eternidade. voou como
pássaro que era, um canário da terra.
enquanto ainda respira é um homem
mesmo que não tenha visto os fogos
mesmo que não saiba que o ano terminou
para recomeçar outro, este em que estamos

enquanto ainda respira é um homem
é um pai é um avô é um ser humano
cheio de falhas e belezas como nós
todos enquanto ainda respiramos

enquanto ainda respira é um homem
mesmo que depois, mesmo que depois
enquanto ainda respira enquanto

ainda respira, mas e depois? por
enquanto respira entre ofegante
e tranquilo, mas e depois, e depois
quanto pesa um homem no fim será
que o peso de todos os homens de
todas as mulheres que pariram estes
homens será que pouco será que nada?

quanto pesa um pai será que o peso
de cada filho será que o peso de uma
família será que muito será que mais do
que estamos acostumados a carregar?

quanto pesa para o homem no fim todo
peso que levou nas costas todo silêncio
que segurou no peito toda lágrima
contida toda garrafa entornada quanto

pesa uma vida quase quase quase

acabada?
conta tia male que naquele
tempo não tinha ceia ou festejos
muito acalorados, era uma noite
como todas as noites, mas com

um copo de leite com achocolatado
para cada um dos sete irmãos.
depois o silêncio do vale e algum
sonho intranquilo, a estridulação

de um grilo, a água correndo no
ribeirão. hoje o pai perguntou se
era natal, respondi que era véspera

e apesar de ter querido e ter lutado
não conseguiu ficar acordado para
esperar a hora dos abraços de
 
feliz natal.
“But he
Don't know what it means
Don't know what it means
And I say Yeah”
Kurt Cobain

atenção para o toque de cinco
segundos - desde menino a
insônia me fez ver a manhã
começar através da televisão
em ruídos para logo um bom
dia exausto para logo as notícias
para logo a cotação das bolsas
o valor do ouro dólar comercial
compra e venda e assim por diante

[as bailarinas dos programas de
auditório com suas cãibras e suas
dancinhas cretinas / os meninos
sonhávamos com as bailarinas e
suas dancinhas cretinas, como
sonhávamos]

a semana do presidente ou
pela primeira vez na televisão
sarney dançando a dancinha
cretina depois collor enchendo
o rabo de cocaína e os meninos
apaixonados pelas loiras do
tchan por luiza ambiel & mari
alexandre e gugu, que morreu
de uma morte cretina, dançando
com as bailarinas

[recorte: quando segunda tela
quente na globo vinicius e eu
disputávamos o banheiro durante
os comerciais porque era rambo
porque era filme de guerra quem
chegasse primeiro podia deitar
melhor no sofá para ver stallone
dançar a dancinha cretina]

naquele tempo ninguém sabia
ou quem sabia calava ou ninguém
nem mesmo desconfiava que o fim
dos comerciais é o início dos comerciais
enquanto choramos enquanto sorrimos
dançando a dancinha cretina das bailarinas
de auditório dois pra lá dois pra cá
faz assim com a mão mexe assim com
a cabeça agora descansa eles já entenderam
eles já aprenderam a dançar sozinhos.


aguentar o peso do homem
e quanto pesam seus medos
(da queda, da altura, da morte)
amá-lo sempre e medicá-lo

a cada quatro horas. [hoje levei
o sorriso do pai para escovar
tão raro um sorriso caber na
palma da mão, tão imenso]

medir com as mãos cada centímetro
do homem cada pelo cada pele
amar cada cheiro do homem cada

curva cada crosta beijar a testa
do homem e sempre evitar as palavras
que nessas horas têm pouca ou nenhuma

serventia.
o primeiro homem que amei
foi meu pai - seu cabelo ondulado
seu relógio no pulso seus braços
carregados de força e sujeição

outros vieram, porém
: o chefe do trabalho que
morreu com um tiro na cara
: o pintor de rua que morreu
de infarto
: o pai de uma ex-namorada
hoje meu grande amigo

amei-os pelos homens que eram
mas eram apenas homens

o último homem que amei
foi meu pai - seu olhar de terror
e graça, sua voz comida pelo câncer,
nossa eterna conversa feita de 

olhares, calares
amor e fumaça.
enquanto os dedos passeiam por
teus braços sem pelos à procura
de ossos e tendões me digo que

me seguraste e me deste um nome.
enquanto tateio teus ossos à procura
do que neles levas me digo que 

permanecerei por nós dois. enquanto
te acarinho a cabeça e te beijo me
digo que a vida é toda uma falta 

seguida duma presença incontida.
e quando te digo Pai, ganhei um
prêmio, e teus olhos vagam pelo

vazio me digo que já sabias,
e tenho certeza quando me mandas,
desajeitado, um beijo que se perde

pelo ar pesado do quarto.
retirar do poema a palavra pai
e construir com outras palavras
outros poemas - assim o pai não
perde o sono e não me olha

como se pedisse afogamento.
retirar do poema a palavra pai
e substituir por outras: vento,
fogo, foto, circo, relógio dourado.

retirar do poeta a palavra pai
para deixar no lugar a areia fina
duma praia baiana, o encontro
das águas dos rios amazônicos,

a tristeza-neblina do rio de janeiro.
retirar do poema a palavra pai
e deixar em branco o poema
retirar palavra por palavra

assim o pai dorme direito e não
me olha como se pedisse água
: o copo nas mãos e a dúvida.
retirar do poema também a palavra

dúvida.

retornar à folha em branco,
ao início repentino de tudo,
ao fim que soa sempre a
reencontro.

retirar do pai a palavra poema
: talvez seja esse o procedimento
mais justo.
é do amor entre os homens
o silêncio os olhares obtusos
as palavras presas nas bocas
com dentes ou sem com palato
mole ou sem com gosto de café
e cigarro, como me ensinou meu
pai recendendo a desodorante
spray com álcool e a álcool que
se dissipa na respiração.

- os etilômetros não nos saberiam
porém
- os grupos de apoio não recebem
nossas visitas porém

(aprendemos a nos virar com a
embriaguez do contato)

hoje lia poesia e pela primeira vez
talvez em toda a vida repousei minha
cabeça em seu ombro e ele recostou
a sua na minha

talvez pensássemos na morte ou
admirássemos juntos o fim da vida

(é dos homens que se amam se tocarem
com respeito então no meio da tarde um
carinho na perna, um consolo no braço
um beijo roubado na testa ou nas bochechas
porque os homens que se amam aprendem
a amar para muito além do pouco que lhes
foi ensinado)

e porque a vida se torna rarefeita
talvez aquele poema tenha que ser
reescrito para dizer em definitivo

: um abraço de pai como quem diz
meu filho - e realmente quer dizer
o que diz.
outro dia sonhei que o pai
fumava e sorria a boca cheia
de fumaça no meio do sorriso
enquanto contava uma história
logo ele, que nunca foi de falar
muito.

quando voltou a fumar
foi um tempo depois da radioterapia
(serviram óleo de girassol no hospital
para curar as queimaduras e pensei
que nos hospitais só servissem química)

mas o pai faz tempo não sorri
o pai agora toma morfina.
como se fosse possível escrever
um poema de amor quando lá
se vão os mortos pro cemitério

(são ataúdes de fundo falso, quem
viu amadeus de alan parker sabe
do que estou falando, sabe sim)

e por isso nos metemos apartamento
adentro com o rabo entre as pernas
com os remedinhos pra cabeça

com as resoluções de ano-novo perdidas
em alguma gaveta - há sempre uma
emperrada, é ali que moram os fantasmas -

como se fosse possível escrever poemas
de amor, como se fosse possível escrever
poemas sobre qualquer coisa - mas nos

metemos apartamento adentro e também
os apartamentos têm fundo falso como
o ataúde com que despacharam o corpo

de amadeus numa vala comum coberta
de cal.
talvez tenhas comemorado meus
primeiros passos - quanto tempo
faz? pé ante pé, um tombo, então

o levantar-se para redescobrir a
caminhada. eu comemoro teus
passos, pé ante pé, e te evito a

queda - porque nunca se sabe o que
é chão e o que é debaixo do chão -
e te admiro os pés e te admiro as

mãos e te admiro teu sorriso de pai
que diz meu filho sem utilizar os lábios
num aceno de olhos azuis que me 

abraçam como se para a vida inteira
para a minha vida inteira - ainda que
sim, mesmo que - pois é - mesmo que

não.
de que a vale a poesia sabemos
que de nada embora que ironia
(é preciso pontuar) que a vida

pereça ao revés da permanência
que se espera dela. como diz
sábato: absurda fome de eternidade

em um corpo miserável e mortal.
e a esperança dúbia entre a vida
que seja eterna e a terra que lhe

seja leve. que não sofra mais e
padeça rápido; que fique perto
e seja eterno.

de que a vale a poesia pensamos
senão para pedir e pedir e pedir
ao deus surdo em gritos vorazes.
não é possível escrever um poema
sobre o encontro do amazonas com
o tapajós, porém

em belém fazia calor e não tínhamos
dinheiro, mas jantamos peixe amazônico
enquanto desviávamos das mangas

que nos miravam logo a cabeça;
comemos tucupi e ouvimos dos
perigos da mandioca, quase o

baiacu de joão ubaldo naquele
seu livro escrito também com
fome, vocês sabem, itaparica;

(um taxista me contou histórias
de pássaros e argumentou que
eles cantam diferente em cada

canto do país, coisa de sotaque);
ver o amazonas da janela do avião
me fez sentir tão brasileiro como

quando atravessei sozinho a praia
de itapuã à procura de nuno rau,
à espera de milton rosendo;

mas não tínhamos dinheiro e foi
seu pinga-fogo quem me depositou
uns trocados para comprar cigarro;

santarém é um pedaço de mundo e
não mundo: é terra com água, mais água
que terra, e quando vi de perto o enlace

dos rios quis abraçar meu amigo milton
rosendo e lhe dizer que assim éramos nós:
dois rios que se tocam, duas correntes,

duas cores, duas temperaturas, que acabam
por se tornar um só rio logo adiante
força imensurável de águas, mas isso

é impossível, porém.
deixa as palavras em silêncio para
que elas não te derrubem da cama

; há sempre um lado melhor para
dormir, mesmo que nunca descubras

deixa as palavras em silêncio para
que elas se aninhem entre tuas pernas

e durmam, como gatos, buscando do
teu calor e sonhando o sonho lento

dos gatos: sem palavras, sem assaltos,
sem poemas, sem tudo isso que te

atropela.
o que cabe ou não cabe no poema
dizer apenas tá foda, vocês sabem
sem menosprezar a língua sem ig
norar as imagens e dizer apenas

tá foda, vocês sabem, mesmo que
o mundo ainda tenha jeito mesmo
que termine dois mil e vinte o que
resta a dizer é que tá foda, vocês

sabem, e não há notícia ou política
que se sobressaia não há saída nem
nunca houve não há justiça nem

nunca houve não há memória que
não magoe não há mais nada.
tá foda, vocês sabem, vocês sabem.
o ensaio sempre dói mais que
a despedida - a escolha das p
alavras dos gestos o olhar em
direção à porta da saída ante

vendo a caminhada até ali co
m uma mala uma sacola uma
mochila - para depois as esca
das a calçada a rua e a vida.

quanto terá havido de prepa
ração é um mistério que sem
pre nos ronda diante de um 

ato impensado. porém tudo é
calculado: a lua para as marés
como o vento para as ondas.
(ilze scamparini falava da itália
caco barcelos de jerusalém
antes ou depois de paulo francis
de paulo henrique amorim
de jorge pontual falarem
de nova iorque)

era tão bonito ver o mundo
pela televisão

o mundo: um mapa a ser
descoberto

era tão bonito pensar que no
mundo inteiro alguém falava português

naquela época, a televisão sintonizava
quando se girava a antena

vinicius me mandava arrumar, ficava lá
dentro dizendo deu não deu tá quase

girando a antena se arrumava o mundo
mundo: esse televisor quebrado que já

ninguém se lembra como faz pra desligar.
janelas

para a Amanda Vital e para o Caio Augusto Leite

nós nunca perdemos tardes inteiras
de domingo assistindo arquivo-x
pensando o que houve de tão importante
nos noventa - se os ternos com ombreiras
se os telefones com fio se os cabelos com
laquê - e nunca passamos tardes inteiras
mostrando-nos fotos de família identificando
aqui meu pai aqui minha mãe aqui aquele
cachorro de estimação. nós nunca abrimos
fizemos suco em pó numa garrafa vazia
de coca-cola e nunca mas nunca mesmo
discutimos a morte de tancredo ou sarney
e a semana do presidente - pela primeira
vez na televisão, dizia o narrador anunciando
um filme que já nascera antigo - e nunca
assistimos juntos ao carnaval de rua de
florianópolis, belo horizonte, são paulo

no entanto

este poema não é um inventário de desfeitos
não é um itinerário de descaminhos não é
um agendamento de impossibilidades não
é um despedir-se, pelo contrário: é sobre
um abraço que ainda está por vir
desajeitado porque triplo porque tímido
- são os abraços que nos apresentam, não
os sorrisos, são os abraços que nos esquentam -
e porque o amor cisma e porque o coração
aguenta ler amanda logo cedo ler caio no olhar
derradeiro que antecede o sono e sonhar com
um texto escrito e vivido e verdadeiro um
poema que termine dizendo

meus amores, as janelas estão abertas
para o vento entrar
e não para nos atirarmos por elas.
a letra sai tremida na dedicatória
como sai tremido o endereço no
envelope só a assinatura desliza
porque assim curva e automática

(se parar pra pensar não sai se
parar pra calcular as curvas não
sai se pensar que estas linhas
representam um nome, o meu)

o isqueiro trêmulo como as mãos
os joelhos a mandíbula e os
pensamentos. reparaste que não

faz frio? reparaste que se te tremes todo
é porque talvez sejas o epicentro
de um terremoto ainda inominado?
houve o tempo do rodízio
3 x 1 dos trabalhadores da
indústria têxtil e foi também

por isso que fizeram aquela
greve linda que ainda vou
escrever em livro. três dias

de trabalho por um em casa
os operários não gostavam.
o pai fazia rodízio também

aparecia depois de três dias
como um deus que ressurge
dos teares. intocável e poderoso

como um deus. mas em 89 eu
ainda não sabia eu achava
que deus morava nas nuvens.
retirar o lixo nos sacos pretos
o que já foi vivo pesa mais
- o saco leve é do reciclável -
limpar a caixa dos gatos
limpar o tapete da sala
limpar o fogão esfregar o banheiro
com aqueles produtos todos
escovar os dentes tomar banho
com aqueles produtos todos
a roupa de cama cheirando
a sol mesmo que o sol não
bata aqui a minha roupa
cheirando a sol mesmo que
o sol não bata aqui. a casa toda
em ordem para receber visita
- ela me disse que é poeta -
a casa inteira cheirando a limpeza
e eu sempre disfarçando o que
apodrece aqui dentro.
perdi as palavras para o poema
que deveria ter escrito perdi os

olhos do poema que agora anda
aflito perdi as mãos os pés do 

poema para dois comprimidos
(um de manhã, um à noite)

perdi o poema, perdi o poema
que não volta, ele não volta

porque nunca soube dizer
direito o endereço onde mora.
por trás das paredes de plástico
deve haver outras por trás do
concreto armado deve haver
ouro por dentro das paredes

quem sabe há esqueletos
esquecidos quem sabe há
tesouros escondidos quem
sabe há somente tijolos

um comprimido por dia
para a vida passar voando
um comprimido por noite
para tentar alcançar o sonho.
e tem essa luz laranja vinda não sei
de onde - o céu é dum cinza espesso
e carregado anúncio de chuva e a coisa
toda - mas a luz tá ali, laranja, no chão

da sala, no chão do quarto. chamo as
gatas e me aninho com elas sob a luz
laranja indecifrável porque é luz mesmo
que não se saiba de onde venha,

mesmo que tão fraca quase não luz.
e me digo e digo a elas que não importa
a origem desde que ilumine, não importa

a fonte desde que. e sorrimos. eu, à minha
maneira. elas, à maneira das gatas, que
pouco ou nada entendem de sorrir.
desviar da pisada, evitar a marca
do solado alheio: recalcular rotas

desvendar atalhos | o mapa é o mesmo
quando descreve a queda? quando se

cai sem freio? | de cima a baixo não
é possível anotar o meio

: caíste, e com tanta força que nem
percebeste que caías

: cais com a certeza alheia de quem
não sabia aonde ia.
acaso contas os passos enquanto sobes
os degraus ou somente assobias uma c
anção qualquer - não importa. a verdad
e é que sobes, pé por pé, e te elevas da

cidade e te distingues dos homens e te
distingues dos ratos e te distingues de
ti mesmo que, lá de baixo, te vês tão al
to, tão alto!, próximo das aves e das nu

vens de chuva, de deus e dos aviões. e
qual a tua surpresa quando te vês, lá d
e baixo, em queda livre - a cara rumo a

o asfalto. e qual tua surpresa quando t
e reconheces pássaro, anjo, deus, avião
sugado pela gravidade que a tudo ama.
deem atenção ao poeta
deem carinho ao poeta
deem os beiços a ele o,

poeta está carente. 

deem elogios ao poeta
falem dos poemas que
leram deem razão ao

poeta, ele está triste.

comprem seus livros
escrevam resenhas
lhe presenteiem com 

cigarros baratos.

deem ouvidos ao poeta
mas deem também alimento
atirem os restos ao poeta

porque ele tem fome.
Durante o funeral de Stalin
409 pessoas morreram
pisoteadas por compatriotas
ante o fechamento do caixão

do Primeiro Camarada.

Delas não temos dados
tampouco seus nomes,
mas de que afinal valeria e
quem aqui sabe ler russo.
morrer deve ser de noite como se
os olhos pesassem naturalmente

o livro aberto numa página a esmo
a lista de compras escrita a lápis

a comida dos bichos preparada
a roupa no varal - sem sinal de

nuvens de chuva. tomara que 
vente nordeste, tomara que o

o governo caia. morrer deve ser
de noite porque os dias têm sido

tão cheios - e a noite sempre será
dos pássaros e dos morcegos.
eram dias assim as nuvens beijando
os morros o calor subindo da terra
para virar vapor os meninos planejávamos
descobertas - o amor ou uma pista com
rampas para as bicicletas, dava tudo na
mesma. o sol se põe antes entre as
montanhas e daí o silêncio e daí o riacho
gordo de chuva esbravejando contra
as pedras. daquele incômodo na boca
do estômago a que se chama medo da
vida ou medo do amanhecer ou medo
de mais um dia de amores vãos e pé
no barro - namorávamos bicicletas.
desde então ternura e terror pelo que
é úmido os pés pisando nas poças o
barro encharcando as rodas - e esse
escapar de corrente a canela sempre
contra o pedal - dor aguda de quem
tenta ir em frente.


te avanço olhos adentro através d
as palavras que sei que procuras a
s vírgulas que degustas como se s
ob medida. te avanço pele adentro

o por teus dentros à procura do q
ue é amor e do que é comida que
me sacie a falta que me sacie a fo
me de toda uma vida. avançamos 

os sinais vermelhos porque estam
os em fuga e fugir é garantir mais
que liberdade: é alcançar saída. te

sequestro daí onde estejas fazendo
o que for que seja pensando que o
que desejas é o que em ti procuro.


depois do dia é que faz sentido ter
idade nova aprender o numeral no
vo que será utilizado até o ano que
vem. aprender a dizer a idade nova

com naturalidade como acontece c
om o ano novo que a gente demora
a reconhecer e depois se lembra de
le com carinho até com saudade co

m mágoa talvez mas lembra porque
teve um nome. ao dizer a idade nov
a não digo trinta e seis e um dia poi

s idade não é fracionada. digo trinta
e seis hoje como direi no ano que v
em. a idade é nova e soa atrasada.
podes correr o quanto te custem as
pernas: estarás lá ainda aonde
chegares quando chegares e se

podes correr o quanto puderes o
quanto tiveres pulmões e pernas
pois não se escapa de si assim

não se foge de si assim

quando o que é fuga é caminho
a meio quando o que é fuga é para
chegares aqui tão perto e me encarares

de frente

: espelho.


estão rente ao chão as
nuvens de chuva e meu
ânimo para levantar daqui
em direção a -

: faço as mãos em concha
para beber o que permites
que te escorra
da boca
das pernas
dos poemas que mesmo que evites
- eu sei que eles te comem viva -

rente ao chão não se faz sombra
rente ao chão não se sofre a queda

: faço as mãos em concha
para te beber em goles que
recendem a leite e por isso
a vida
- como se do peito brotassem flores
- como se a colheita restasse ainda

um astro de cinema se suicida enquanto
te digo que te permitas ver mais adiante
porque são tudo projeções numa parede
branca - está e não está ali o que vemos

; está e não está ali o que temos
para dividir nessas noites longas
de um inverno como nenhum outro
poderá ser 

- há um poema embaixo do teu travesseiro
e é por isso que custas a dormir há um poema
no ralo do chuveiro há um poema entre as
tuas carnes e é por isso que custas a admitir

o que é preciso deixar escoar
o que é preciso permitir fugir

que é preciso se permitir a queda
mesmo o chão já nos beijando a face.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...