20 de nov. de 2009

O sorriso de Larissa.

Não sei ao certo quando foi a primeira vez que Larissa e eu nos amamos. Sua mãe e eu havíamos bebido demais num jantar entre amigos e coube a mim pagar a babá e levá-las até a cama, sua mãe, ao nosso quarto e Larissa, ao festivo quarto rosa onde habitava. Larissa vestia pijama e entre suas curvas pude ver que não usava calcinha, os seios em crescimento despontavam por sob a camiseta de algodão. Tinha doze anos, por essa época.

Não sou seu pai biológico, embora sejamos parecidos. Conheci sua mãe quando de Larissa já lhe caíam os primeiros dentes. Nossa proximidade, apesar dos anos, nunca nos proporcionou o amor vital entre pai e filha. Pelo contrário: sua beleza desde sempre me provocou ao ponto de ambos nos constrangermos com a presença alheia. Não nos tocávamos que não fosse com os olhos. Aliás, penetrávamo-nos com os olhos e assim mesmo, nos olhando, chegávamos aos orgasmos mais bonitos.

Mas não sei como nos amamos a primeira vez. Na prática, quero dizer. Acho que era verão. Larissa trouxe as colegas de escola para uma tarde na piscina. Sua mãe e eu observávamos suas peripécias entre nosso silêncio e os goles que dávamos num uísque que estalava ao contato com o gelo. Sara, Fernanda, Letícia, eram tão joviais aqueles corpos, exalavam doçura. Do alto da minha embriaguez, eu pedia que me convidassem: “Vem, tio, brincar com a gente”. Não me chamavam e eu sabia que a responsabilidade que ainda me restava não me deixaria chegar perto da excitação do Zé Mayer comendo a Mel Lisboa.

As meninas foram embora, a mãe de Larissa foi para a cama com dor de cabeça e Larissa foi se lavar. Quando passava em frente ao banheiro, vi a porta aberta. A dor de cabeça do uísque já começava a dar sinais. Pelo vapor que eu via, adivinhava Larissa em seu banho. Diminuí o passo, mas ciente do meu desejo, me virei a fim de retornar à cozinha, encher mais um copo e ir dormir, inerte. Eis que a porta se abriu. Larissa enrolada numa toalha de rosto, os cabelos cheios de xampu:

— Jorge, me ajuda com o chuveiro? A água tá muito quente!

Nunca me chamou de pai como eu também nunca a considerei minha filha. Não pela falta de contato, de amor que sentíssemos um pelo outro, apenas por uma questão de responsabilidade. Enquanto convivíamos em família — Larissa, sua mãe e eu — sabíamos que o ar que se respirava em comum trazia o peso da excitação que nos acometia quando nos cruzávamos, volta e meia, pelos corredores.

— O que há, Lala? — era assim que, carinhosamente, eu a chamava.

— Aqui, Jorge: a água tá escaldante.

— Espera um minuto, já volto. Tenho que buscar as ferramentas.

Sim, eu precisava, ao mesmo tempo, buscar a caixa de ferramentas na garagem e me certificar de que a mãe de Larissa dormia. Voltei ao banheiro, Larissa sentada sob o vaso, devia estar mijando, a toalha somente lhe cobria os seios, agora. Entrei no box — era daqueles modelos que travam por dentro, nunca entendi direito o porquê —, abri a água, estava tudo normal, temperatura agradável. Atrás de mim, a figura juvenil de Larissa. Virei-me e disse que tudo estava certo. Após fechar a tranca do box, deixou cair a toalha e pude vislumbrar pela primeira vez seu jovem corpo nu. Faria catorze anos no mês seguinte.

(…)

Nunca havia sido um mau esposo. Pelo contrário: a mãe de Larissa e eu formávamos um belo casal. A verdade é que, com o crescimento de sua filha, o seu corpo que naturalmente tornava-se flácido, porque vivido, deixava aos poucos de me interessar. Minha esposa, com o tempo, foi se entregando cada vez mais aos calmantes e ao uísque: não aceitava meu desinteresse e, como se pode imaginar, não tinha coragem de me confrontar. Por causa de suas fugas, Larissa e eu nos tornamos cada vez mais amigos.

Entre a decadência total do meu casamento e a paixão arrasadora entre Larissa e eu puderam-se contar uns curtos meses. Sentia-me um Amaro realizado, com a minha pequena Clarissa sobre mim. Se o Érico tivesse podido, seu romance não seria nunca aquela pasmaceira ingênua. Éramos ali, todo o tempo: transávamos antes de eu levá-la à escola, depois do almoço, dentro da piscina. Para tanto, havia dispensado a empregada e me valia das minhas férias aliadas às fugas de minha esposa, mãe de Larissa.

Tudo corria calorosamente bem até o dia em que cheguei do trabalho, passava das dezoito horas e vi Larissa sentada junto à parede da cozinha. Seu rosto machucado, o sangue lhe escorrendo do nariz.

— O que aconteceu, pelamordedeus!

— Mamãe, ela sabe de tudo!

— De tudo o quê? — gritava ansioso, esperando disfarçar meu nervosismo.

— Tudo sobre a gente, tudo, TUDO!

— Espera, Lala, eu vou conversar com ela.

Antes que pensasse em me dirigir ao nosso quarto, já Larissa punha-se de pé à minha frente. Enlaçou seus finos braços sobre meus ombros, na ponta dos pés, e sorriu, o canto da boca machucada. Sorria.

— O que é isso? Tá maluca?

— Pára, Jorge, ela não vai mais nos incomodar.

— Como assim? — disse eu, nervos à flor da pele.

Larissa sorria o riso do ódio e do orgasmo. Meu desespero alcançou seu extremo. “Como assim, nunca mais incomodar?” Não tinha coragem de repetir a pergunta. Já Larissa me beijava, o gosto doce de sangue surgia na minha boca.

— Nunca mais mesmo? — perguntei, ansioso.

— Não, nunca mais.

E antes de pensar o que dizer à polícia, aos familiares — mesmo antes de imaginarmos maneiras de não nos tornarmos suspeitos, trepamos ali mesmo, no chão da cozinha. Somente uma vez revi aquele sorriso macabro e excitante nos olhos de Larissa. Foi no dia em que me levaram algemado, condenação certa, não havia álibi que me salvasse. E da doçura quente daquele olhar, da maldade sobressalente daquele sorriso só posso dizer o óbvio para um homem que teve Larissa úmida entre seus braços: sinto saudade.


Publicado antes no Duelo de Escritores.


Demônios de pedra.

Sentado no primeiro banco do lado direito, ali na praça da matriz, relembrava: “Foi aqui que a vi? Não teria sido do outro lado?”

O vento sul chicoteava contra seu rosto. Se tivesse sido aqui ou ali, o que importava? Se os anos haviam sido bons, se já não queria que houvesse mais anos, o que importava? Sentado na praça da matriz, tinha a imensa igreja diante de si como paisagem. As mãos dentro dos bolsos, observando o nada com atenção. Relembrava e se dispunha a retroceder nos anos: “Se pudesse refazer, recalcular, reviver — mas vivendo de novo, errando nas horas certas (na quantidade de açúcar no café, no tempo de forno do peru de natal) — eu seria melhor. Deus, como eu seria melhor!”

Os anos. Quantos? Era-lhe duro calcular, muito duro, nunca soube com certeza: esquecia-se das datas, ano após ano: não havia necessidade do mérito, do aniversário: desde o primeiro dia havia sido o mesmo dia. Só agora vê que não: eram dias que se seguiam, se ultrapassavam, datas que se cansavam a si e cansavam-na, ela, que acordava na madrugada fria, pelo tempo que tiveram, para perguntar-lhe:

— Sabes que dia é hoje?

— Terça-feira?

— Não, amor: um outro dia, um dia especial…

Esquecia-se de lembrar. Então por que agora relembra dos meses, das datas, de hora após hora como se precisasse reviver as lembranças para não morrer a cada instante? Morria-se: “Como era mesmo o nome daquela cidade? Daquele disco? Daquele livro? O número do apartamento? A cor da camiseta? A banda preferida? O telefone?” Se não encontrava uma resposta, a mais simples que fosse, o peito rasgava-se, o estômago revirava-se, os pulmões eram comprimidos por tudo que houvesse de culpa nesse corpo agora magro, doente e triste.

Sentado na praça da matriz, riu-se ao perceber que o prédio decrépito ainda exibia mais vigor que a sua parca figura. Foi ali, tinha certeza, dali eles podiam apreciar a monumental escultura de concreto incrustada no centro da cidade — prédios, prédios, prédios — mas uma praça e ali, a construção. Riu-se ao lembrar:

— Vamos embora, tá ficando escuro.

— Não tem problema, querida. É seguro aqui. Vê ali o posto da polícia?

— Não é isso, são esses monstros ali, aquelas imagens de pedra.

— As gárgulas?

Explicou do que se tratavam. Pelos primeiros encontros, pelos primeiros anos, ainda discutiam arte, sexo à oriental, arquitetura. “Não há o que temer. Vê? São de pedra, não podem sair dali: quem ousar dizer o contrário é cineasta americano que quer o dinheiro da gente”. Riram-se juntos.

Calafrio!

Sentado só, já não lhe eram somente imagens de pedra: tentou contar, uma a uma: eram seus demônios, a sobra do que ele havia sido, as razões de toda insônia. Foram as noites em claro que fizeram com que ficasse assim, de pedra, embora não vigoroso como as esculturas: se fosse algo, seria um monturo de calcário e estrume, um monte de merda endurecida.

Calafrio!

Estariam mesmo o percebendo? E rindo? Recitando, uma a uma, sem que para isso fossem requisitadas, os pecados cometidos, um a um? Não podia mais com aquilo: já lhe falaram as paredes, os móveis, o travesseiro, nenhum havia sido tão cruel a ponto de lhe dizer: “Vê, foi aqui que tudo começou”. Levantou-se rapidamente. Para onde correr? Para onde fugir? “Psiu! Vê? É aqui que tudo vai terminar”.

Sem mais pensar, observou atentamente e pela última vez o bloco de concreto esculpido, a praça — que com a luz amarela dos postes exibe contornos tão bonitos — e encarou os demônios, os seus demônios que, sabia, guardavam todas as suas culpas. A mão no bolso, um grito de pedra ecoou pela praça ao tirar dali a arma. E vários gritos puderam ser ouvidos quando mirou contra seu peito. Explica-se: para sofrer com os demônios da memória, para alimentá-los, é preciso estar vivo.

Não se sensibilizou com o desespero das gárgulas. Há anos que vinha aqui, sentava-se nesse primeiro banco e lhes dava de comer com suas lamentações exaltadas. Agora não, não mais, nunca mais: havia chegado a hora de deixar de carregar consigo a culpa que carregava sozinho e que sempre havia pertencido aos dois — só agora se deu por conta de que pertencia aos dois.

Quando a notícia foi adiante, não houve espanto nem surpresa. A não ser com o relato de uma testemunha: a mulher que se sentava no primeiro banco, mas do outro lado, e que ia ali chorar a ausência do seu querido — por onde anda, quanto sofrimento deixou — para seus demônios de pedra: “Primeiro foi um grito, mas eu não sei de onde veio. Depois, muito grito junto, grito de dor, de sofrimento. Daí, olhei pro lado e tava o homem de pé, arma não mão. Soluçava, chorava muito. Então parou, ficou imóvel. E no momento que ele atirou, moço. (pausa). No momento que ele atirou, ele sorria!”

Publicado antes no Duelo de Escritores.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...