24 de jun. de 2019

BR 470
i.
uma estrada
não inaugurada
carrega somente
os mortos seus
trabalhadores que
por inobservância das
normas de segurança
vieram a sofrer
acidentes graves


ii.
não há cruzes ou altares
ao longo da via
não há flores
nem pedaços de automóveis
e de gente

iii.
os governos não lamentam
os mortos não havidos
e não fazem projeções
: é serena ainda uma estrada
não inaugurada

iv.
na estrada ativa
há uma placa em que se lê
Estamos há 9 dias
sem vítimas fatais,
numeral fixo

todos os dias
há 9 dias

há um morto preso
a esta placa que não
comemorará aniversário

v.
quando o presidente
vier para inaugurá-la
serão omitidos de seu
discurso os desvios
e a demora

cabe numa estrada
não inaugurada todo
o futuro do agora.

[19/06/2019]
morrer é uma vez na vida
tanto faz o rio de heráclito
o verão as andorinhas
morrer é uma vez na vida

morrer quem sabe todo dia
se o cigarro se a cachaça
os comprimidos as ameaças
morrer quem sabe todo dia

uma vez jovem a vida anda
vai tão depressa que nem
responde onde vai dar

uma vez jovem a vida anda
vai tão depressa que não ensina
que a vida: a vida: a vida: a.

[14/06/2019]
i.
acreditava que melhem adas
era nome dum deus geográfico
atlas
a Terra nos ombros
senhor da geografia
: a grafia dum M com
as pernas abertas
voo de pássaro na capa
do livro, no início do nome
no sonho acordado no banco
da escola pública
o sono, o sono.

ii.
senhor melhem adas,
pois homem
[quem diria] agora buscando
talvez libanês ou turco-otomano
a viagem ou sonho das
fotografias coloridas
[bendigo as gráficas, a tecnologia,
a década de 1990]
: via dutra, imigrantes, anchieta, rio-santos
e outros lugares por onde passei, homem,
rebuscando o menino e o sono do menino
e os sonhos de viagem - o banco da escola
de onde se sonhava para poder sair.

iii.
não sei todavia do cerrado da amazônia
das planícies pantaneiras do nordeste do
sertão de cubatão - embora são paulo -
não sei daquelas vias engarrafadas por
fuscas e chevettes e opalas
no entanto
senhor melhem adas
quantos quilômetros
de estradas passei enquanto
a explicação sobre demografia
se alongava
quantas capitais desse país
quantas florestas quantas
moradas - de senador camará
a capuava - de carapicuíba a
brasília e de lá, à ilha de santa
catarina [um rabisco no mapa].

iv.
senhor melhem adas, muito obrigado
pelas fotografias coloridas dos livros de
geografia.

v.
ainda que
( entenda meu reclame)
não tenha visto imagem da vizinhança
ou das montanhas dos rios de lama do
enxaimel-aborto-da-arquitetura

ainda que
(entenda, entenda)
o vale os alemães os italianos os japoneses
as carroças as vacas o queijo o leite
o sotaque a verdade e tudo aquilo
que não cabe nos livros
senhor melhem adas,
os livros não cabem nos livros, tampouco
os interiores as periferias as linhas invisíveis
entre aqui e a ali.

vi.
surgia hum mil novecentos e noventa e sete
e viegas entrou torto na sala de aula para pregar
o mapa de cabeça pra baixo no quadro verde
ele dizia que o mundo que os mapas que as
projeções ele dizia que as cidades que as culturas
que as populações

e aquele mapa profano do cabeçalho virado,
senhor melhem adas,
valeu mais do que todas as fotografias e os
mapas de seus livros

[me perdoe]

vii.
talvez joaquim me desdiga
(joaquim é geógrafo e professor, sorri
com os olhos
[não saberia dizer do sorriso do senhor]
e escreve poesia à maneira da maior cidade
brasileira
[o senhor veja, geografia e poesia]
mas no entanto profiro aqui
que o senhor melhem adas
geógrafo e escritor
autor de livros didáticos
escolhidos pelo professor
me fez estrago com os gráficos as linhas as cores
os dados os mapas e os vetores
mais do que me causou estrago
a própria poesia dos livros
com rimas-amores-dores

e por isso tomo liberdade para requerer:

viii
senhor melhem adas
peço-lhe que
caso haja tempo ainda
o senhor revise seus livros didáticos, pois sinto
falta de que sejam mostrados
(além das praias das montanhas das planícies dos planaltos
das rodovias)
a) o progresso, bairro sempre ao sul onde nasci
b) as ruas onde os meninos eram felizes
c) a fábrica, senhor melhem adas, a fábrica
d) a rua da glória e a oficina de bicicletas do pai do elias
e) uma cidade cansada, aquela

ix.
dado o pedido, digo que aguardo
se não uma retratação, um sinal
de que foram compreendidos
meus pedidos de revisão em algum
de seus livros, senhor melhem adas

x.
que não é deus ou atlas
que não é turco ou libanês
que não sabe de mim nem dos meus
mas que por humano e professor
imagino que tenha ouvidos
por isso me despeço do senhor
melhem adas
profundamente agradecido.
obrigado.

[08/06/2019]
outro poema para o Edward Thieme:
no passado, os meninos se abraçam
diante do futuro
: reencontros são sempre
pegadas que repisamos
: memória é um arbusto
no meio dum campo ensolarado
onde já se viu sentir saudade
de quem sempre esteve ao meu lado.

[29/04/2019]

um homem parado fumando um cigarro
na correria do meio-dia nesta cidade
que é uma ilha em que as pessoas em
que as ilhas um homem parado fumando

um cigarro como se não houvesse pedintes
como se não houvesse tristeza nem céu nublado
nem bolsonaro nem correria nem contas em
atraso, apenas um homem fumando um cigarro.

a mulher parada fumando um cigarro não
vê o homem parado fumando um cigarro,
não o conhece, não o enxerga, não se preocupa

embora se os dois se vissem e se aproximassem
e se abraçassem e se beijassem no meio da via
cigarros acesos beijo de cigarro que bonito seria.

[09/05/2019]
poema de domingo
contento-me em
não ter sonhos

[desde o caminhão de prêmios
de nescau (que nunca veio)

desde aquela conversa
com deus (que nunca houve)]

desde o nascimento.

[05/05/2019]
memória: em 91 o pai enxotou a chica
- se era esse o nome da cachorra
e a ofensa marcou tão fundo
que chorei para a professora

memória: quando na mudança de casa
perguntavam-me se tinha certeza
rhenius me deu cinquenta reais de ajuda
para a mudança: chorei com clóvis

memória: sempre que abro a caixa de
cartas e me deparo com quem eu era
choro nos braços imaginários de meus amigos

agora isso: um tumor grande e vários
tumorezinhos, fotografias que não se
movem, um trem a pilha que nunca veio.

[26/04/2019]
se ao cheiro de morte acostumam-se
o médico, o veterinário, o socorrista
o açougueiro, o carrasco, o dentista
o enfermeiro, o policial, o legista

o arrumador de cadáveres e a esteticista
o coveiro, o padre, o motorista
as carpideiras e as sopranos solistas
também se acostumam, já sabemos

por que, então, a afirmação diária
(que a indesejada se mantenha distante)
da impossibilidade do costume?

se, mais do que cheirar, ela envolve
abraça e beija como amante antiga
e faz do mau agouro seu perfume.

[26/04/2019]
o ocidente é um lugar tão
triste como um bêbado
todo molhado - depois de
três dias de chuva, chega

o quarto. a imprensa e os
poetas, as poetas, a política
os políticos, tudo isso que é
tão distante e próximo como

os vícios. quis tomar a cachaça
de meu exu e soube que não deveria,
quis atropelar freiras velhas

mas me faltou rodovia. hoje
não me falta nada, tenho cigarro e
tempo. mas daí esse lamento.

[25/04/2019]
vem aí uma chuva vem
uma chuva aí olhem através
das janelas que a chuva não
espera a chuva não espera

não e não adianta correr
se esconder ou procurar
as sombrinhas as capas
impermeáveis as marquises

porque vem aí a chuva e ela
não tem pena dos incautos
não tem dó dos desastrados

dos esquecidos dos humilhados
a chuva vem e molha a todos
depois estia e pronto.

[04/04/2019]
há uma cidade por trás
dessa névoa e ela funciona
normalmente apesar do teu
mal-estar apesar do teu

medo de elevadores e panelas
de pressão. há uma cidade
logo abaixo de tua janela e ela
está lá, estará ainda que

insistas em não vê-la. há uma
cidade por trás de tua cegueira
seletiva - os crimes seguem

acontecendo, as sirenes invadem
teus silêncios porque há uma cidade
que não hesita em te comer vivo.

[14/03/2019]
i.
não há estatística que demonstre o número
de trabalhadores mortos em testes de submarinos
de guerra tanques de guerra armas de guerra e suas
relativas munições | enquanto consumidores diretos
e indiretos não chegamos a nos perguntar afinal
quem são os que foram usados de cobaias nos
testes dos referidos
artefatos
o que
nos leva à cruel dúvida de se o número de mortos
em guerras neste mundo não deveria ser multiplicado
por x a fim de alcançarmos a proximidade de um
número crível sobre quantos foram/serão os mortos
até agora nessa nossa rude história da humanidade
claro
sem esquecer
que
uma morte é sempre multiplicável pela quantidade
de dor que causa embora a comoção pública em tempos
de redes sociais nos mostre que a)generaliza-se a comoção
b) dura somente até o próximo momento | no entanto
se lidarmos com a questão dos trabalhadores mortos
e feridos em fábricas de armas em fábricas de mísseis
em fábricas de veículos blindados em fábricas de
fardamento militar talvez nos assustemos com o número
embora o tema não vá lá causar comoção alguma onde já
se viu comover-se com trabalhadores


ii.
(atentemos para o cenário:
para efetuar um disparo de canhão são necessárias
algumas pessoas, entre elas: 1) o engenheiro balístico
cuja função é calcular o ângulo do tiro; 2) os carregadores de peças
e munição; 3) o oficial, cuja função é gritar FOGO com
entusiasmo e na entonação adequada - diz-se que
o cinema de hollywood ensina melhor do que a própria
guerra mas isso são por enquanto meramente boatos)

iii.
se insistíssemos que não devemos nos lamentar
por mortos em fábricas que produzem maneiras
de morte - coisa que faria sentido numa lógica
reta mas a realidade não anda em linha reta
a realidade é uma bêbada linha bêbada
tentando atravessar a avenida às seis da tarde -
se insistíssemos, retorno, que não devemos
nos preocupar com os trabalhadores das fábricas
de morte e se tampouco nos preocupamos com
os trabalhadores das coisas da vida - a saber
agricultores pecuaristas pescadores e afins
ou mesmo com trabalhadores que envolvem
a vida como alfredo que produziu toalhas de
banho e lençóis durante toda a sua
lembremos então dos trabalhadores chineses
que produzem e modulam as nossas vidas
como um todo embora orientais embora
chineses embora o ocidente embora a distância
e mesmo embora a revolução cultural

iv.
não há estatística que demonstre a quantidade
de mortos nas fábricas de armas de submarinos
de tanques de guerra de armas de fogo de munições
de aviões de helicópteros de cassetetes de coturnos
de armas de choque de facas de canivetes de espadas
de capacetes de miras laser não há estatística que
demonstre quantos são os mortos e isso é um erro
pois é contabilizando perdas que se fecha as torneiras
do desperdício veja só quanto dinheiro seria economizado
se as mortes diminuíssem e se em vez de fabricar armas
os mortos fabricassem casas ou plantassem árvores
que interessante seria que interessante.

[06/03/2019]
um mapa que mostrasse
o caminho entre o antigo
e o agora com todas as
armadilhas sinalizadas

a topografia da vida não
sinaliza corretamente
altos e baixos minas de
ouro e deslizamentos

evita o tropeço, diria
a legenda, alcança o
atalho e segue adiante

norte é seguires em frente e
se as bússolas te mentirem
procura o cruzeiro do sul.

[14/02/2019]
no prédio em frente,
as diaristas trabalham
arduamente para manter
limpas e perfumadas
as roupas, as coisas

são mulheres negras,
são mulheres brancas
estendendo roupas na sacada,
batendo tapetes, mantendo limpos
os cômodos, o ambiente

trabalham tanto, mas trabalham
menos que o patrão, a patroa,
que lhes pagam o suor escorrido
com o muito suor contido
em escritórios refrigerados

as mulheres trabalham e limpam
e se arcam e se cansam e se quebram
e se revigoram com a volta pra casa
nos ônibus lotados de fim de tarde
para encontrar suas crianças

ali, no entanto, nas sacadas, mantém
o dever cumprido: limpando frestas
limpando os cantos para que a patroa
e o patrão possam chegar em casa e
descansar

enquanto assistem ao jornal nacional
e reclamam dos péssimos caminhos
que têm tomado esse país que agora
parece voltar aos trilhos, logo deixam
de exigir carteira assinada

para a faxineira.

[05/02/2019]
a lembrança mais remota
é a ainda no dodginho do pai
janela aberta, vento no rosto
não sei onde íamos ou porque

[a segunda lembrança é aprendendo
a dirigir no colo do homem
que isso?, perguntei
é o manche. ele ria.]

quando lavava carros
o prejuízo do acidente
foi tão alto que quis me
atirar da ponte

daí que o pai subia
calçadas com a variant
verde-abacate: álcool,
medo e solidão

[o manche não era manche,
o homem não
era também, o medo
e apenas ele]

por isso não (me) dirijo.

[26/01/2019]

22 de jun. de 2019

Há um homem sentado à mesa no lugar do pai. Ao lado um gato e um cão. O homem parte o pão com sabedoria. É preciso ser sábio para acertar as metades. Não sorri porque não tem dentes; cego, não vê a quem estende a mão; tampouco escuta quando lhe agradeço.
Obrigado, ele diz, por te sentares comigo à mesa, por não me exigires sorrisos, por não me contares nada.
Leva à boca sem dentes o pedaço de pão encharcado de café e sorve dali o ocre amargo.
Ainda sinto o cheiro, diz, e é como se tivesse cor.
Ainda sinto o gosto, diz, e é como se amasse a dentadas.

[30/12/2018]
do subúrbio levo esse cansaço
essa umidade apesar do sol
mofo se diz nos travesseiros
hoje chove de novo eu digo

adeus adeus paisagens adeus
morros se o sol só aparece para
destratar a pele clara os olhos
claros meu pai e suas marcas

da paisagem resta apenas uma
ideia quem sabe um cheiro de
grama cortada de mato com chuva

de merda de vaca de cachorro
molhado do subúrbio levo apenas
esse cansaço e essa tristeza.

[27/12/2018]
i.
são as horas são as horas
por isso os meninos não
chegam à rua as horas as
horas por isso os meninos
de banho tomado as horas
as horas meninas pra dentro
que já fica escuro as horas
as horas ninguém me ensinou
a dar corda em relógio

ii.
piloto não pilotava nunca pilotara
nada mas tinha cachaça e os meninos
ah, os meninos
olhávamos o truque da fumaça do cigarro
sair pelos olhos
piloto, mais um golinho?

iii.
as corridas de bicicleta
as pipas os bonequinhos
outra camisa do palmeiras que daniel
mostrava com orgulho
daniel e sua mochila quadrada
daniel e um poema triste sobre a perda
do primeiro amigo

iv.
o primeiro cigarro entre os meninos
: certa tarde, levei uma bala de fuzil
a colocamos entre duas lajotas
o menino que deflagrasse o tiro
seria o menino mais menino de todo
o mundo.
por sorte ou não, nunca conseguimos

v.
o mundo era maior que as viagens
que já fizemos. o mundo era imenso.
daniel foi pra alemanha, mauro pra
bolívia, murilo pra rio do sul - os
meninos nos encontrávamos
sempre como quem se despede.

vi.
existe um lugar tranquilo
(e as horas e as horas)
que relógio algum alcança
(as horas, que horas)
os meninos adormecem
(horas horas horas)
e a vida ensaia sua dança.

[16/112/2018]
Para Simone Teodoro, tardiamente:
primeiro veio a fórmica
o balcão o baleiro os copinhos
e duas qualidades de amendoim
doce e japonês

embalados em saquinhos de papel
e as moedas pequenas que a mãe
punha na minha mão e dizia
pra ver quanto dava

não era necessário palavras
porque as moedas já diziam
: doce ou salgado
e os dedos fazendo um V

primeiro veio a fórmica o baleiro
o caminho de casa ao boteco
renato, o bêbado que me mostrou
o ninho de beija-flor e contava

sempre e de novo a história
da cobra - que deixava o veneno
sobre uma folha caída para beber
água - e depois o sugava de volta

primeiro veio a fórmica
a fumaça dos cigarros campeão
os saquinhos de papel com
amendoim dentro e uma sensação

assustadora de que era seguido
(a benzedeira disse depois que
aquele meu susto era do anjo
da guarda que me acompanhava)

parece que a fórmica o bar
as pessoas do bar mesmo renato
meu pai o amendoim os dedos
em V doce salgado a corrida

pra casa. parece que a fórmica
veio antes de deus.

[04/12/2018]
Voltei ao meu primeiro poema depois de 23 anos.
****

Hoje é uma sexta-feira
Não quero me levantar
Quero ficar deitado
Até o sol raiar

Até o sol raiar
Já estarei descansado
Eu agora me canso muito
Pois estou apaixonado

Eu estou apaixonado
Por uma garota linda
A garota dos meus sonhos
Da minha vida

A garota dos meus sonhos
Pois agora estou sonhando
Mais tarde, quando acordar,
Estarei sozinho, chorando.
[1995]

***********

menino, olha o que escreveste
neste teu poema pequenino
olha ali a sexta-feira - a droga
mais forte que se pode consumir
quando não se trabalha aos sábados
aos domingos aos feriados
- naquele tempo, ficar deitado
era uma forma de tocar o infinito.

que cansaço e que paixões
se os poetas se despedem da vida
saltando de prédios - até que andar
subiremos? houve um tempo, menino
- aquele de noites longas e dias infinitos -
passa o canudo e o prato pra cá
e foi assim que perdi meu aniversário
porque acordei e já era noite
perdi o aniversário de minha mãe
porque cheguei e já todos se tinham ido
perdi o aniversário de meu sobrinho
enquanto engolia o choro a caminho
do trabalho

as mulheres de nossas vidas!
luiza, ligia, nossa mãe
a paciência que precisam ter
enquanto tropeçamos em palavras
a caminho de um caminho que se abra
- por isso mais um livro? para que possas
dizer o que não está escrito na tua cara?
as mulheres - não as garotas, menino -
que nos amam e nos perdoam
amam e perdoam
amam amam amam
e nós não sabemos retribuir tanto amor
porque há sempre um poema no meio do
caminho, uma frase, um enredo para uma história
um jeito novo de escrever o mesmo livro

sonhamos, sonhamos
ainda hoje sonhamos com um passado
sem tanto atrito conflito e cansaço
ainda hoje sonhamos - e a professora bete
que disse para escrever um poema, onde anda?
dizem que morreu de câncer, quem diria
ainda hoje - outro dia lembrava nossos nomes
hoje - é o menino que escreve poemas

o adulto canta de novo aqueles versos
o adulto não sabe dos caminhos da vida
o menino é poeta, dizia dona bete
infelizmente ela estava tão certa.
[2018]
a mancha azul entre os molares
denuncia que é tarde para recursos
simples e paliativos

e esse gosto na língua
e esse gosto

[hoje deus me tocou e ele
trazia no bafo o azedo de um
poema de pierotti]

as crianças estão por chegar
as crianças estão a caminho!
- uma vez, no elevador, caí

chorando por um reencontro
que aconteceria nove pisos
abaixo - edward me abraçou

ao final e depois rimos e bebemos,
jovens que éramos.

as gavetas têm contas e comprovantes
[hoje deus me tocou e ele soava a garçonete
de filme americano]

seja como for, não é mais tempo
e também não encontro
a fita dental.

[15/11/2018]
A corrida de elevadores
com seus repousos
de doze horas

(há sempre um lado
de fora, embora o
silêncio das horas noturnas)

- trinta e poucos anos
saboreando precipícios
me deram o direito de

acreditar que independente
do estio, o mangue trafica
pedaços de chuva.

[14/11/2018]
os baleados de carajás
os meninos da candelária
os cento e onze do carandiru
as crianças de vigário geral

os guarani os kaiowá os terena
os soterrados de mariana e teresópolis
amarildo, o pedreiro desaparecido
chico mendes e a freira dorothy

o menino tito, o menino vinícius
marielle franco e dandara
morreram para que caíssemos

pedindo mais amor por favor?
ou para que aprendêssemos
a ter vergonha na cara?

[29/10/2018]
eles não sabíamos de nada
depois que a festa foi feita, pá
depois que as cortinas se abriram
e jovens embriagados divertiam
adolescentes pobres com sonhos
de drogas e roquenrol

eles achávamos que estava tudo
acertado - brizola & betinho retornando
do exílio - ninguém se perguntou pelas
ossadas do araguaia porque havia ouro
para ser retirado em serra pelada

eles comemorávamos a abertura
mesmo que os generais se aposentassem
e torturadores vorazes fizessem escola
enquanto, nos almoços de família,
jornal aberto mostrasse os vagabundos
criminosos comunistas
- eu bem que fiz a minha parte

eles cantávamos cazuza e renato russo
eles cantávamos a música da barata
do ursinho - ou vão me censurar (será?)
e era tudo divertido porque os jovens
tinham motos 2 tempos e capacetes
coloridos - os jovens morriam como moscas
naquele tempo em que fizeram o asfalto,
lembra?

eles acreditávamos em conceitos vagos
de democracia e coragem - naquele tempo
foi duro, mas alfredo bebeu cachaça e operou
teares independente do que houvesse lá em cima
- os generais se aposentaram ganhando milhares
e os operários, ah os operários e seus sonhos
de aposentadoria e seus filhos galgando o mundo
pequeno
e sua realidade de ninharias

eles sonhávamos com um país desenvolvido
com carros voadores como nos filmes
eles brincávamos de presidencialismo
- um presidente a mais ou a menos
se as corporações ainda - quer que eu explique?
e os jovens poetas do roque tomando overdose
e falando verdades simples - comemorávamos
- falando verdades tristes - comemorávamos
até que todas as canções de protesto foram
esquecidas em gavetas junto de contas pagas
e contas a serem também esquecidas

também o amor amarelece
também o futuro amarelece
tudo fica sendo mais ou menos amarelo
de acordo com os óculos antigos
- porque tentamos ver o que queremos
e não choramos nossos mortos como
deveríamos

- fosse assim, não ousaríamos chamar
ao diálogo, mas clamaríamos à forca

foi a literatura que não lemos ou a que deixamos
de escrever que nos fez covardes parlamentaristas?
foi o colégio eleitoral de tancredo ou a rouquidão
de vozes que pediam aos golpistas que parassem

- a sensibilidade dos leitores não permite que exibamos
aqui a fotografia de mussolini enforcado pela reação
italiana

tampouco o pedaço da têmpora dum adolfo covarde
que preferiu fugir com um tiro (como um candidato
que se nega a ir ao debate) -

eles queríamos um país do futuro que nos chegasse
pelo rádio ou através de programas de televisão
de domingo
mas estávamos ainda dormindo ainda comemorando
que a ditadura caiu a ditadura caiu a festa da democracia,


e enquanto comemorávamos as vitórias e dormíamos
banhados em glória, eles fazíamos o que queriam
porque eles não gostam de música
eles não gostam de literatura
eles bebem cachaça e operam teares
rezam a deus rezam aos pares
eles querem que o fim do mundo se adiante

- eles não demos corda no relógio outra vez, não é?

eles não sabemos exatamente o que esperar do que vier, não é?
eles estamos com medo de que nos passe o que aconteceu com quem aparece nas fotos, não é?

somos todos muito covardes, não é?

mas não matamos / porque somos bonzinhos
não maltratamos / porque somos bonzinhos
não julgamos / porque somos bonzinhos
exatamente como eles nos queríamos.

[15/10/2018]

talvez se nos assistissem frágeis numa das muitas cenas de pânico que protagonizamos durante os dias teriam motivo para apontar nossas fraquezas para pisar nossas feridas e rir abertamente de nossa fragilidade mas eles não vêm aqui, eles não sabem onde aqui fica - eles supõem que nos conheçam, mas de suposições o inferno já vai bem carregado a solidão dos apartamentos: às centenas se todos soubéssemos o caminho as ruas estariam cheias de cadáveres os pássaros já os teríamos matado a todos as redes de proteção já teríamos retirado uma a uma e acompanharíamos a queda dos animais de estimação e das crianças de colo e andador uma chuva amarela anunciou granizo mas o que caiu mesmo foi a pressão arterial - aquele vento ventando as ventas dessa cidade suja e carcomida - chuva invertida de papel e soluções à vista - no fim, foram aquelas gotas necessárias para causar colisões traseiras escorregamentos na calçada brigas entre vizinhos e cada vez mais distância entre as pessoas outro dia falei um poema que me exigia uma risada - nunca morri tanto como naquele fingimento outro dia escrevi um livro outro dia fiz uma oração outro dia eu era um menino sujo de barro até os cabelos - o futuro não assustava como o agora essa demora em vencer os dias essa demora brincamos de revolução como se um raio nos atingisse (no mesmo lugar no mesmo lugar no mesmo lugar) mas somos sozinhos e animados como o boneco de posto que me observava na caminhada diária para comprar cigarros animados e sozinhos e apaixonados mas sobretudo sozinhos e distantes como animais enjaulados animados sozinhos e apaixonados como animais enjaulados animados sozinhos e apaixonados como animais enjaulados.

talvez se nos assistissem frágeis
numa das muitas cenas de pânico
que protagonizamos durante os dias
teriam motivo para apontar nossas
fraquezas para pisar nossas feridas
e rir abertamente de nossa fragilidade

mas eles não vêm aqui, eles não sabem
onde aqui fica - eles supõem que nos
conheçam, mas de suposições o inferno
já vai bem carregado

a solidão dos apartamentos: às centenas
se todos soubéssemos o caminho as ruas
estariam cheias de cadáveres os pássaros
já os teríamos matado a todos as redes de
proteção já teríamos retirado

uma
a
uma

e acompanharíamos a queda dos animais
de estimação e das crianças de colo e andador

uma chuva amarela anunciou granizo
mas o que caiu mesmo foi a pressão arterial
- aquele vento ventando as ventas dessa cidade
suja e carcomida - chuva invertida de papel
e soluções à vista - no fim, foram aquelas gotas
necessárias para causar colisões traseiras
escorregamentos na calçada brigas entre
vizinhos e cada vez mais distância entre as
pessoas

outro dia falei um poema que me exigia uma risada
- nunca morri tanto como naquele fingimento
outro dia escrevi um livro outro dia fiz uma oração
outro dia eu era um menino sujo de barro até os
cabelos - o futuro não assustava como o agora
essa demora em vencer os dias essa demora

brincamos de revolução como se um raio nos atingisse
(no mesmo lugar no mesmo lugar no mesmo lugar)
mas somos sozinhos e animados como o boneco de posto
que me observava na caminhada diária para comprar cigarros

animados e sozinhos e apaixonados
mas sobretudo sozinhos e distantes
como animais enjaulados animados
sozinhos e apaixonados como animais
enjaulados animados sozinhos e
apaixonados como animais enjaulados.

[01/10/2018]
[mercado]

antes que feche, pensei
pra comprar queijo manteiga
banana limão cigarro tinha
comprar leite talvez pão
quarenta reais em dinheiro
na carteira que tem me dito
quase sempre não

daí a flor
a flor de que fala luiza
a flor que coloriria o fim
desse dia comprido

deu 41,79, disse o moço do caixa
deixa eu ver minhas moedas
- não levei
deixa eu ver se passa no débito
- saquei tudo antes

deixei, claro, a flor
que me coloriria
e aquela parte de mim
que me queria.

[26/09/2018]

[escola]

o imperador compôs a trilha
(mas não sabia de poesia - por isso
ter chamado um poeta oficial para o nobre ofício
- um puxa-saco, provavelmente, como costumam
ser os deste tipo)
do hino da independência

uma vez por ano ficávamos em pé mais de hora
saudando a bandeira, os feitos, as glórias
tentando cantar os hinos, sempre acompanhados
por uma caixa de som ruidosa

(japonês tem quatro fi-i-lhos)

o imperador compôs a trilha
o poeta encaixou a letra
o alto-faltante enfanhava a melodia
[japonês tem quatro fi-i-lhos]
e a linguagem difícil
e a coluna dolorida
os pés pisando na brita
dum pátio de escola pública

porém o que não nos ensinaram é sempre o que mais importa:

seguimos sendo colônia
apesar dos esforços escolares para sabermos a letra do hino

pedro primeiro tocava piano - deve ter aprendido desde menino

brizola cantava a segunda estrofe, mas já ninguém se lembra disso

nossa paródia nunca foi adiante do
japonês tem quatro filhos.

[26/09/2018]
spazie, palavra nunca escrita
encontrada num livro de alemão
para iniciantes - spazierengehen
(passear por aí), aqui tem significado
diverso: canário do reino, apelido
de meu pai - e pai dos pássaros
que pousam neste quintal de agora

a fábrica, a estopa (aqui dito: fazer
paninho - os pesos da balança da oma
(oma, avó - opa, avô), um brinquedo
pesado - a memória e seu peso

digo: um guarda roupa alemão
que habita o quarto de vinícius
- o quarto do pai, nosso quarto
- o cheiro de homem velho, o
carinho das roupas de cama
dobradas - a memória e seus
fragmentos

mas para ilustrar:

gerhardt - pronunciado guerra pelas
crianças que não ouviram nunca o alemão
dialetal da boca dos velhos - gerhardt
sobrevive ainda - parece que não morre
ou já passou da hora

não sei por onde andei, não sei
disse à tia: soterraram um pedaço da minha história
spazie já não caminha, os pássaros o visitam
gerhardt ainda está vivo - mas ninguém sabe como

aqui é outro lugar, nem eu entendo como
e disso vocês não sabem nem nunca saberão.

[15/09/2018]
(Para Mô Ribeiro, com café preto, sem açúcar)
topei muito chefe besta
nessa minha vida torta
muito patrão muita lenha
obediência e lorota

já fiz muita cara feia
trancando dedo na porta
chegando atrasado um dia
que desculpa me faria?

água muita que caía
(era chuva e ventania)
e eu topando chefe besta
pensando: o que vai, volta

somando na dor da azia
uma manhã meio morta
todo dia todo dia
uma manhã meio morta.

[13/09/2018]
(Para Eduardo Sens, no meio de uma conversa)
estive a dois passos
de me formar em ciências
sociais, há dois anos

larguei. "vou ser
poeta", disse

neste país que não
ouve sociólogos
e não sabe de poesia

preferi o zero-a-zero
me entregando ao que já
era

e deixando partir aquele
que eu poderia vir a ser

um dia.

[13/09/2018]
Para Marcelo Pierotti
(madrugada, no chão da cozinha)
não sei aí, mas as
lembranças me parecem
desfocadas como uma
filmagem de aniversário
da década de oitenta
a que não tive acesso
- então essa mania
de animar fotografias
e tomar o ontem de
sequestro
(um cartaz em cartolina
: pincel atômico cola tenaz
e purpurina
: um letreiro que avisa
pregado à parede da escolinha
que o pior está por vir)
luzes de discoteca
e dancinha
xuxa angélica
chacrinha
e o algodão no nariz
do morto - na altura
dos olhos - contando
a última verdade
não sei aí, mas memória
é coisa sempre complicada
e simplória.

[13/09/2018]
No Jardim Paulista
criadas empurram
crianças sobre rodas
acompanhadas por
suas patroas de pele
muito alva e olhar
ordenador

Ali, na Alameda Casa
Branca, 815
Carlos Marighella foi
assassinado por Fleury
(beija o anel do papa,
beija!) em novembro
de 1969

No Jardim Paulista
é possível tomar um
cafezinho a 2,50
o melhor preço da
cidade até agora

No alto da ladeira,
na Avenida Paulista,
centenas de pessoas
se ocupam de atravessar
a rua no momento em
que o semáforo lhes
aponta tal possibilidade.

[24/08/2018]
vou viajar amanhã e sinto saudade
de luiza do cheiro de nossa casa
saudade de falar sem voz olhar
e ver sem voz sem voz os olhares
se bastam

mas ainda não: há o avião
possibilidades de queda
desconforto com meu cheiro de cigarro
nas narinas das aeromoças e senhoras
finas que sentarão ao meu lado

eu

que não tenho força nos braços para
puxar a carroça que meu pai
que não tenho força nas pernas para
me carregar nos braços como minha mãe
eu que ainda sinto vergonha por ser o menino
pobre nas festas de aniversário dos filhos do patrão

assim

fica resolvido que cada encontro na grande cidade
será o verdadeiro encontro na grande cidade será
o verdadeiro encontro de quem sinto saudade
quando não estou por perto

é certo

que a vida faz curvas faz curvas faz curvas
e o círculo, o círculo se emenda
a cobra se engole
a vida se engole
e passa mal

falei

pra joão que tenho sentido fome
que as contas as contas as contas
mas não volto atrás porque

a) o vento

b) a brisa

c) a bruma

e estes motivos e estes encontros
e o tempo para abraçar a culpa
para repisar os erros para engolir
a seco as memórias e os enganos

vou

para abraçar amigos vender uns livros
segurar a barra

que a vida é vivida a esmo é vivida mesmo
que seja na marra.

[20/08/2018]
jogamos os sonhos no ventilador, meus amigos
a sala não cheira bem até hoje embora litros e litros
de desinfetantes e incensos indianos produzidos
no interior de algum estado pobre desta nação riquíssima
procuramos emprego como quem pede desculpas
não temos o ar professoral dos vencedores os ganhadores
sabem como ninguém erguer a cabeça no momento de subir
ao pódio - ao pó voltaremos ao pó voltaremos ao nada
quem tivesse nos visto dez anos atrás vinte anos trinta anos
diria que estaríamos aqui caminhando para onde em círculos
cada vez mais perdidos despreparados desesperados
por uma resposta?

pagamos o preço mais alto, meus amigos
as noites em claro as manhãs compridas tardes
e tardes enxergando o óbvio: perdemos perdidos
que somos - se tivéssemos ficado em casa não cairíamos
nas garras dos pedófilos astutos que rondavam as tardes
suburbanas não teríamos perdido a inocência e os sonhos
não cheirariam tão mal - mas precisamos nos esconder
entre as cobertas entre as lixeiras entre os defuntos
- é lá que nos sabemos protegidos.

vertigem pode ser fome porque ando bêbado a seco
bisbilhotando palavras que me digam que meu nome
pode ser escrito com outras palavras, meus amigos
compreendam que perdemos tudo mas mantemos
nas mãos a chave do cadeado como um tesouro -
o engano é o preço mais caro a se pagar pela crença
- onde estivemos todos esses anos que não percebemos
que caíamos?

a verdade é cara e não temos nem para o começo
pretendo falar a verdade toda vez que me sentir ouvido
quando me quiser olvido tranco a porta engulo a chave
escrevo um poema faço um café e me sento sozinho,
meus amigos

porque vejam: solidão é um triunfo dolorido e se baseia
sobretudo no fato de que a campainha não vai tocar
não vai.

[08/08/2018]
fábrica igreja fábrica
igreja fábrica igreja

bar e lanchonete
bar e restaurante
bar bar bar
(farmácia)

morro de um lado
e do outro
e do outro
e do outro
(panela)

se fugir o rio derruba
se ficar o rio carrega

jararaca a cobra
a estrada

madrugada via láctea
(lágrima derradeira)
como um abraço de
nossa senhora
se crêssemos nela.

[08/08/2018]
quando chegou o asfalto
a cidade ficou mais próxima
jovens morriam de acidente
e domingos eram de velórios

a terra que sujava os pneus
das bicicletas fora enterrada
sob as espessas camadas
de lama escura, dura e eterna

a terra que sujava os sapatos
que o pai vestia para ir pra fábrica
a terra que sujava os sapatos
de minha mãe antes da faxina

(um pedaço de papel à mão
para limpar a vergonha)

a estrada que levava à casa
de minha avó permaneceu
selvagem: macadame depois
da chuva para aliviar solavancos

os senhores engenheiros
decerto comemoraram o sucesso
da empreitada: liso como um mar
sem vento

nunca mais visitei a oma e o opa
(o português esforçado sob um
sotaque estrangeiro - os olhos
de meu pai no antes da genética),

como se calçasse tênis brancos
pagos, é claro, no crediário
da pague menos calçados
da rua quinze, lá no centro da

cidade.

[03/08/2018]
a vontade de dormir
afaga sempre mais
que o sono

(quando venta é
das janelas o poder
de proteger)

medo é tudo que
dói antes de
acontecer

e poema é um
jeito de ser, mas às
vezes não sei como.

[03/08/2018]
Poema em construção para Renan Nuernberger

i.
que a impermeabilidade
nos ensine o que
o arquiteto escondeu
nas curvas

o que há de concreto
em existir reside nas
falhas múltiplas
mútuas

ii.
quanto suor
é preciso para
engrossar a
massa

teus pais e talvez
teus filhos chorarão
sobre tuas brasas
(de vergalhão incendiado
de ferro contorcido)

iii.
depois fica a lembrança
do edifício
: ali compus uma canção
: ali morava fulana
como se tratasse de um
fantasma

onde ali havia um
prédio
(minha história)
não há mais nada.

[27/07/2018]
Poema apenas para Rafael Tahan

i.
por exemplo
o êxodo

(quem diria que
uma fuga de quatro
décadas pudesse
ter se realizado
em seis dias?)

por exemplo a vida
(quem diria,
quem diria)

por exemplo
o exemplo.

ii.
uma gotícula
outra e outra
- nuvem não é
fumaça
se fica ou se passa
nuvem é outra coisa
(por exemplo
apenas)

iii.
quem diria
que o exemplo
- o êxodo
a nuvem -
fossem da mesma
matéria?

como se resultado
de atrito
escapando como se
de uma artéria.

[25/07/2018]
se eu lhes contasse o que
vejo da janela esse cinza
esse vento e o que sinto
temor de dias há dias em
que a ilha é rodeada de
bruma e de mar bruma
e mar apenas como se não
houvesse outra coisa como
se nada já tivesse havido

se eu lhes contasse dos
temores das andanças
das insônias dos escritos
das ideias dos poemas e
deste livro esquisito onde
procuro vingança onde busco
acolhimento onde a infância
a criança o quando importa
mais do que os agoras

se eu lhes falasse dos cinzas
dos mortos dos sonhos
dos medos das noites
e de como me curo e de como
me escondo no abraço da mesma
mulher de como me fujo de como
me caço se eu lhes falasse
seriam apenas palavras

seriam apenas.

[24/07/2018]
a cidade tem sido
maior do que cabe
aos mapas demonstrar

além da ponte já é
como se não houvesse
outra margem

já é como se eu
não carregasse
este nome

palavras fazem poemas
e digressões
monografias e

dissertações
mas são pouco utilizadas
em conversas de interfone

[23/07/2018]
i.
o asfalto encobre
a serpente de terra
suas pedras e os trilhos
da carroça puxada pelos
braços fortes de meu pai

ii.
são casas ao lado
de casas - as mais antigas
são casas e são nomes
: ali moram os labes
ali os -

iii.
empregadas têm
empregadas e os filhos
da empregada
continuam sendo
não deixarão de sê-lo

iv.
a costura deixou a
fábrica e agora ocupa
a casa de quem se
havia libertado dela

entre máquinas e carretéis
linhas antigas formam
sorrisos e olhares de
contentamento
: família é o nome dado
a estas linhas.

v.
livros que escreva
pessoas que me escutem
todo poema se apequena
diante desta paisagem :
quintais com flores
capoeirão e aves
- se um tucano
se uma saíra-de-sete
-cores

vi.
o dia avança sobre
todos os dias anteriores
(o mesmo dia, eterno)
e o sol se põe entre
as montanhas
(mais cedo do que antes)
entre orgulhoso
e comovido.

[12/07/2018]


Os gatos de meu pai
criados sob o tempo
largo da aposentadoria
se achegam ao carinho
como quem conversa
- eles também não respondem.

Os gatos de meu pai
admirando pássaros,
nominando nuvens,
abrindo olhos muito
azuis para o mundo.

Os gatos de meu pai
armam o bote e
exaltam a vida,
apesar de qualquer prognóstico,
além de toda expectativa.

[12/07/2018]
Percebemos, senhoras e
senhores, ser impossível
seguir adiante
E por isso o próximo
passo é tão importante

Ao poço sem fundo
Ao fundo do mundo
Senhoras e senhores,
é impossível

Apertem o passo,
estendam os braços
para o invisível
e voem! Voem,

senhoras e senhores!

[07/07/2018]
morrer é cedo começa
antes de percebermos
no espelho alguma marca
alguma mancha antes de
rangerem os joelhos antes
do amarelamento do marfim
e antes mesmo do medo
que antecede o fim começa
antes de se medir a altura
antes de se calcular o calibre
antes de se pensar em errar
a trajetória começa antes
de rarearem os cabelos
antes de esbranquiçarmos
antes de pensarmos o que será
de ti e de mim
começa antes muito antes do fim.

[06/07/2018]
venta sul e forte
tão intenso há
tanto tempo

madrugada de
olhos abertos:
oração pra ventania

(tanto tempo
tanto vento
podia ter visto

voar o dia
e tudo que
nele sobra)

mas o dia
em si
resiste

de vento em telha
de cinza em sol
de hora em hora.

[03/07/2018]
feridos estamos
mas nos levantamos
e abrimos os braços
e mostramos os dentes
: puro enfrentamento

atropelados, arrastados
estrangulados, eviscerados
dessangrados, mortos
e enterrados
mas brasileiros

(o hino à capela
antes do jogo salva
de três tiros - para o pai
para o filho e para o outro
referência tardia num livro
bandeira esticada sobre
o morto)

o amanhã nunca chega
(amanhã de novo).

[03/07/2018]
ouvimos fogos
aviões depois silêncio
de domingo

: as notícias não assustam
tanto como esse
silêncio ferino

depois mais fogos
mais aviões e a tarde lenta
indecidida

a guerra não virá
porque já acabou
e perdemos

a guerra não virá
porque perdemos
sempre perdemos

é todo dia.

[01/07/2018]
levanto a voz para que me escutes
(são só palavras, não há fogo nelas)
tampouco nos dias corre algo que preste
: os dias têm as veias entupidas

um cadáver perfumado talvez tivesse
salvo esta tarde, mas onde encontraremos
um morto a essa hora: já passa das onze

estão encerradas as transações bancárias
as traduções de algaravias palavras que
não sejam bifurcadas e promessas para
este dia que se afunda e não termina.

[29/06/2018]
somos feitos de choro fácil
por isso uma história por
isso uma canção uma
memória uma tarde fria

(as tardes têm sido tão frias)

meu irmão foi tantos anos
meu pai e meu pai foi tão
menino naquelas noites de
hospital. fazia frio também.

(noites em claro. as noites)

penso que voltar seria tão
fácil: a casa da infância
aquela fotografia rara em
que todos aparecem sorrindo

(eu também sorria. até eu)

mas somos feitos de choro
fácil e despedidas. naquela
manhã em que parti, já faz
tanto tempo, eu sabia

que não pode tornar a partir
quem nunca chegou a voltar.

[21/06/2018]
passos maiores que as
pernas pontes sem cabeceiras
pontes sem ter para onde
passos que deixam pegadas
passos que tropeçam
pés que se enleiam

tombo

passos por sobre a ponte
tombo por sobre o corpo
pés que procuram água
passos de nadar pro fundo
da baía sul

(os dias têm sido tão curtos
os dias
quando chegam a nascer).

[18/06/2018]
em noventa e quatro
quando roberto baggio
chutou por cima do gol
gritei sozinho diante da
televisão segurando a
bandeirinha de plástico

desde então domingo
futebol e frio resultaram
em solidão para aquele
pequenino que cantarolava
baixinho o tema de abertura
do fantástico

desisti da televisão
desisti do futebol
mas volta e meia abro
os braços e seguro contra
o peito, com força, o menino.

[16/06/2018]
os moradores da praça
em frente passam frio
e rangem dentes

comem o pão que o diabo
descarta por causa do mofo
por causa da traça

os moradores do prédio
em frente se antecipam
com cerca eletrificada

nos arredores da casa
dos que não têm casa
e que fazem da praça

o seu quintal.

[13/06/2018]
seu tomio tinha uma oficina
onde os meninos íamos incomodar
quando as mães já não sabiam
o que fazer: semana de chuva

seu tomio reclamava mas cedia
as pedras de carbureto com que
fazíamos fogo nas poças desde
que não contássemos de onde

tivessem vindo. o céu de chumbo
derretido guardava o segredo dos
meninos e do mecânico. o céu

de chumbo, esperávamos derreter
com uma reação química que ainda
não compreendíamos.

[12/06/2018]
o terminal de ônibus
foi construído sobre
o aterro sanitário
e por causa de outro
aterro o esgoto
precisa ser elevado
com bombas enormes
para alcançar o rio
é por isso, senhoras e
senhores
é por isso que às seis
da tarde esta cidade
tem o cheiro que tem
é por isso e não por
outro qualquer
motivo.

[08/06/2018]


perderemos também os nomes
e seremos apenas mais uns
encurralados e dispersos

sem cheiro nem cáries nem tinta
já terão nos levado tudo
que tão humanos nos fazia

sem contas a pagar ou receber
sem cartas pra esperar ou escrever
livres para andar a qualquer lado

já nem haverá mais o que se ver
pois antes que a terra tenha o que comer
também os olhos já nos teremos arrancado.

[06/06/2018]
um homem tem que ter a sua crença:

eu acredito na poesia,
eles arrotam sua gramática
sigo preferindo o dia
àquelas noites tão ingratas
acredito nas crianças
ou como dizia gonzaga
acredito na rapaziada
com aluguéis em atraso
de sapatos furados
mas canetas em riste
para narrar cada detalhe
de nossas vidas malogradas
o câncer de nosso pai
ensina datas
os olhos de nossa mãe
copiam cascatas
tudo por causa de nossa crença :

um homem tem que ter a sua doença.

(Para Daniel Senna Irgang, de quem roubei o último verso)
[02/06/2018]
não te recordes daquele
inverno comprido regado
a conhaques e atrasos
: ele não voltará nem
será necessário

não te martirizes com a
cicatriz de rosto contra
asfalto já que todos erramos
e errar, sabemos, é encarar
os fatos

não te comprimas dentro
da tua vida nem ouses
questionar o que há por
trás dos panos, o próximo
ato.

e agora que os pés
te doem talvez seja hora
de aceitar que as meias
te caem bem: querer
aquecê-los não é sinal
de fraqueza.

[20/05/2018]
morrer é uma forma de chantagem
dinheiro causa mas não cura câncer
o vale é mais profundo do que antes
amor é quando as crenças são somadas

há muitas portas por onde sair
e muitas razões para não voltar
os ratos se orientam pelos cantos
os raios miram antes nas crianças

perder é acostumar-se ao desencontro
herança são marcas que não se lavam
ferir-se vale mais que a cicatriz

poemas são afetos que cantamos
mais fácil que cair é atirar-se
morrer é uma forma de dormir.

[19/05/2018]
pasto, passado

delírio de ruminante
olhar desatento e insosso
chove aqui como chove
em qualquer lugar

pasto, passado

sal e soja transgênica
inseminação artificial
(o braço inteiro enfiado)
a cria é certa, porém sem
garantia

pasto, passado

não há intenção de liberdade
os quatro estômagos contemplados
cerca elétrica e arame farpado

o matadouro também funciona
em domingos
e feriados.

[14/05/2018]
como se esta cidade
me devolvesse e me
tirasse dum tempo em mim
tão mal resolvido

vá lá: se tivesse chovido
e estivesse abafado, mas
hoje fez aquele frio
antigo de fim de tarde

como se esta cidade
me devolvesse ou me tirasse
uma portalegre que não
existe a não ser nos meus poemas

e numa foto em que aparecem
pedro e leonardo
onde caberiam dover, edmar e nozari.

[13/05/2018]
um poema para carminha
(nesse dia das mães que não passaremos juntos)


i.
quando explodiu a panela
de pressão na casa da vizinha
carminha foi quem entrou
para desligar o gás antes
que explodisse o botijão
depois descascou batatas
e pôs para cozinhar como
quem não descansa

ii.
cresci ouvindo-a cantar o
alecrim dourado, terezinha
de jesus, mãezinha do céu

[uma tristeza sempre certeira]

então cantei as canções que
eu mesmo fiz e nenhuma
alcançou aquelas

iii.
por ter perdido a mãe
por ter perdido o pai
a pobreza sem fotos
fez de carminha um retrato
singelo de saudade

iv.
é preciso também chorar
de alegria sempre que
for possível

v.
quando jovem quase afogou-se
e por isso me trata ainda
como se eu estivesse sempre
me distanciando da praia
em direção ao azul profundo.

[09/05/2018]

i.
murilo é filho de gabriel,
meu amigo, de quem fui
também filho em algum
momento duns anos atrás

ii.
quando moraram na casa
em que eu não ia por medo
dos cães da estrada - ao
conseguir chegar lá, sozinho,
pus na mão do menino uma
moeda e disse muito sério
para ele cuidar

iii.
vi as moedas que me deram
sujas de barro de quintal
juntando todas não alcançava
o preço de um doce

iv.
gabriel me mostrou Carolina
ensinou sobre motores de carros
defendeu-me um tanto da vida
e falou-me de bicicletas

mas sobre moedas, não.
é por isso que essa história
se encerra por aqui.

[06/05/2018]
já perdi tempo demais com
poesia veja-se que nunca
parei para ouvir pj harvey
com a atenção que dedicava
paula a ela - paula: um poema
do primeiro livro quase dez anos
atrás

ou

não tive tempo de ler o quixote
ou os karamázov ou a trilogia
de miller que comprei em
promoção - sigo buscando poemas
que falem de meu pai no pai
de quem escreve seus próprios
poemas

ou

porque adiei férias interessantíssimas
para imprimir um livro ou porque
não consigo dormir e então escrevo
ou porque há que se fazer valer a
vida e portanto a escrita me calha
melhor do que limpar banheiros

eu

o sem profissão e sem abrigo
sem direção a meio do caminho
com saudade sempre dum tempo
que nem é tão antigo

onde as palavras eram só isso
quase não mais que apenas

a

[02/05/2018]
vinicius chorou quando
declamei um poema com
seu nome e sobre nossa
infância num lançamento
triste num corredor de
shopping a luz branca
tocando a retina com
mão áspera

: eu me contive

(porque antes de tudo
sou poeta imagina
chorar por qualquer coisa
uma dedicatória de felipe
o carinho de luiza o colo
de minha mãe o olhar azul
de meu pai ou mesmo
vinicius sendo homem na
minha frente)

eu, que sempre achei
se tratasse ele dum deus
dum herói de quadrinhos
personagem aquele que
mata o inimigo e salva
a mocinha no final.

[23/04/2018]
o velho se humilha diante
de outros velhos: canta e dança
o ilariê tendo diante de si uma
caixa de sapatos onde espera
depositemos moedas

a velha que pede comida diante
do restaurante diariamente
desde as sete da manhã e o
cego que inventa na flauta doce
o que seus olhos já não podem
lhe contar

: humilhados como os bolivianos
e os senegaleses e os haitianos
que escapam da polícia que apanham
da polícia que renegociam com a polícia
as falsificações que comercializam

os humilhados de pés no chão
e dedos em feridas que não tomaram
a dose diária de vida e pedem trocados
para comprar o almoço e a sobremesa preferida

: estão todos vivos

(só não há na rua poetas
os primeiros a se esconder
ou diríamos simplesmente
já estão todos mortos).

[09/04/2018]
paisagem que esconde os zumbis
e esconde os estupros e esconde
os assaltos e esconde paulo nogueira
habitante das ruas do centro na

cidade de desterro que leciona a
história que importa aos passantes
: a primeira escritora negra
: a origem de machado de assis

paulo pede uns trocados para
tomar café pagar o almoço
de domingo - dores que as aulas

fazem passar. dessa janela
onde estico o corpo - vê? -
é possível avistar o mar.

[08/04/2018]
a vida esta vida
manoel já disse
que carlos já disse
e a gente bem sabe
que não presta

por que então os
sorrisos porque
então os abraços
por que eles fingem
ser santos talvez
nunca entenderemos

mas há qualquer coisa
não dita há palavras
engolidas há semanas
que são sempre mais
difíceis de viver

porém eles estão
felizes eles estão
contentes eles não
sabem que gente
é aquilo que nasce
pra ser

[eu não acredito
nos seus princípios
eu não acredito
nos seus conselhos
eu finjo ter medo
eu finjo ter medo
para passar longe
desses sorrisos

que nunca distingo
se são blasé
ou são botox].

(para Rodrigo, pela companhia)

03/04/2018
já dei de comer às formigas
com 2/3 de minha vida
os ouvidos estão sempre atentos
às promessas de calor

algo acontece a fundo
quando o menino toca tambor
: talvez que os mortos se animem
: talvez que os anjos se percam

entre o rufar de suas baquetas
e as ordens de nosso senhor
: tão bonito que é o menino

pensando guiar a canção
quando é o som de seu tambor
que acerta os passos do mundo.

(para Ruan Rogê Mueller)

[11/04/2018]

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...