28 de fev. de 2018

sobre o lançamento do meu livro
sobre o lançamento do livro dele
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mãos dadas e dedos entrelaçados
: assim caminho pelas ruas de são
paulo ao lado do poeta carregando
o poeta que bêbado vai e pede calma
e ri e para e me conta de quando comprou
um violão

sou eu e o poeta que por ali vamos
descendo a ladeira evitando os
degraus atravessando entre os carros

[é noite de lançamento do meu
livro eu deveria cuidar das pessoas eu
deveria conversar com as pessoas eu
deveria levar o poeta para dormir]

degrau

ele para

porque não quer atravessar porque vem
vindo um carro até que eu digo que sou
eu quem manda aqui ele diz o cara manda
aqui eu afirmo sou eu quem manda aqui
e os carros param

degrau

escada

para por o poeta no quarto de hotel barato
são quatro lances de escada fui eu que
preenchi a ficha eles sabem a minha letra
e o poeta tem livro agora o poeta tem livro
agora o poeta segura o livro e o recepcionista
olha e ele diz que é ele que está ali e eu digo
é ele que está ali e o mocinho aperta os olhos
e diz é o senhor mesmo, é sua foto.

calculo comendo silêncios que ele
tem o dobro da minha idade que agora
ele está impresso que perdeu um amor
faz tempo que talvez sejamos amigos
e me lembro do dia em que pus o pai
na cama depois de ter arrastado seu corpo
desajeitado por toda a casa sobre um tapete
puxando pela perna

mas meu velho não é poeta
e era tão pesado um saco morto
bêbado e pesado de quem me lembro
enquanto abraço o poeta enquanto encaro
o poeta enquanto peço que ele sobreviva
enquanto lhe dou boa noite

naquela noite de meu pai
não tive sorte de dizer palavra.
desperdiço um fósforo ao acender
o cigarro e ignorar a entrada necessária
na papelaria onde comprarei 10 envelopes
de papel pardo para enviar dez livros para
dez leitores amigos deste livro novo que
ainda não consigo ter como filho mas é isso
: precisamos nos conhecer melhor.

as promessas do tempo falam de chuva e granizo
mas não há sinal de intempérie enquanto caminho
com rodrigo aos correios - e enquanto caminhamos
falamos de livros e de escritores que conhecemos
que conhecíamos que andam por aí às vezes como
fantasmas de corpos insepultos e que cheiram mal.

desperdiço um cigarro pela metade antes de lembrar
que preciso trabalhar noutro livro que preciso manter
os amigos nos bolsos como lembranças como notas
de dinheiro esquecidas em casacos que só lembramos
de revisitar quando realmente faz muito frio.

o fósforo, o isqueiro e este calor úmido
desperdiço
e esqueço de algum detalhe muito importante
enquanto visito incêndios e deixo que tudo
se termine de queimar.

16 de fev. de 2018

i.
a fábrica engoliu homens
meu pai meu avô
mastigou direitinho 32 vezes
mais de 30 anos
os restos foram recebidos com festa
em almoços de domingo que não
compreendíamos

ii.
a fábrica engolia pessoas e regurgitava
máquinas pessoas e máquinas até
os homens serem teares mais que homens
operários mais que homens
mais que homens: máquinas.

iii.
nunca entrei nunca deixaram
há boatos de que os fiapos de algodão
formam braços e arrastam os incautos
para o fundo da fábrica

(uma foto do século XIX mostra como
era e como é dentro do prédio
porque lá não tem calendário
relógio ou outono: é o tempo da fábrica)

na fotografia, um homem coberto de penugem
branca. meu pai coberto de penugem branca
nos cabelos loiros esbranquiçados de algodão
e de velhice

iv.
a fábrica engoliu gente até que num arroto
expulsou a todos um a um como cachorros
a reestruturação a reestruturação
a reestruturação da década de noventa.

v.
o monstro adormecido não deixa o pai
dormir. toda noite, meia-noite, é hora
da janta. na fábrica.

o monstro adormecido não deixa o pai
dormir. o pai - vinte anos separado da
fábrica.

vi.
naquele prédio ao lado tinha uma bibioteca
- a primeira fuga, a primeira brecha
o primeiro pulo sem saber do tamanho do mundo
- eu não tinha tamanho para o desafio
mas hoje me permito e aponto o dedo
e acerto o riso
e grito
eu grito
e a fábrica, deitada, não responde
nem aceita o desafio de medir
qual dos dois
ela e eu
qual dos dois
é mais forte.

12 de fev. de 2018

os policiais que miram nos jovens
negros e revistam as bolsas e mostram os cassetetes
e mostram quem manda os cães do estado
mostrando quem manda neles e eles mostrando
que obedecem
porque os cães são obedientes e bem alimentados

o casal com o carrinho de cerveja ela tão jovem
saia jeans evangélica e o marido tão jovem
anunciando a oferta de três latas por dez reais

os funcionários do bob's devidamente uniformizados
saíram em dupla com dinheiro na mão em busca
de troco o troco exposto na mão eles passam e correm
no meio do bloco de carnaval

um homem negro vestido de rei africano na escadaria
do rosário o maracatu o rei africano o rosário

a caixa do posto de gasolina que responde ao
bom carnaval com sim, claro, aqui atrás do balcão
e a senhora pergunta se ela trabalha direto e ela
responde que sim, trabalha direto e abaixa a cabeça
e sorri

a praça xv cercada de tapumes fecharam a praça
os moradores da praça distantes dos braços
da figueira que promete coisas depois de 7 voltas
ou outras voltas promete coisas a figueira de braços
abertos e vazios

um homem velho sentado embaixo da marquise
da loja de departamentos enquanto a chuva
porque não tem figueira nem abrigo ou casa

carnaval, o carnaval, o carnaval
eu fico triste quando chega o carnaval
cantado no elevador botão nove apertado
gustavo e luiza comigo

a porta a dois segundos de abrir
para depois voltar a fechar.
o vale, o frigorífico
os campos neutrais
fazem divisa entre que
mundos - adiante se vê
a estrada que leva de
[enclave] a outro a outro
a outro e não há balsa
escuna banana boat que
nos livre das ilhas que nos
tire de nossa própria que
nos permita - há o [enclave]
e todos os outros - roa bastos
e sua ilha cercada de
terra por todos os lados
enquanto aqui, a ilha é cercada
de ilhas por todos os lados
com acenos de nunca ir lá
(não se sabe se não voltas
ou se voltas outro ou se voltas
outros ou se sabe-se lá)
como a placa que anuncia
uma rua sem saída: é preciso
entrar sempre entrar sem pedir
licença se a rua é sem saída
não é possível sair nem mesmo
por onde se costuma entrar
como esta ilha
estas ilhas
o lado de cá da ponte
é o lado de lá da ponte
e a ponte é uma placa
ilha sem saída
para quem vem
para quem vai
para quem se deixa estar.
sentir os ossos em redor
dos olhos e perceber a
cavidade antes do olhar

tirar da flor tudo que é
abstrato: raiz, caule, folhas,
seiva, fotossíntese

chegar ao objeto
ao cerne
à coisa

realizar o poema
apenas com o que
existe.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...