25 de fev. de 2016

marcão contava
de quando era
jovem, o álcool
acabou com ele.

contava da esposa,
das filhas, da mãe que
nunca mais tinha
ido ver em curitiba.

marcão havia sido
pedreiro, carpinteiro,
empresário do ramo
de salgadinhos.

visitava minha casa
com uma sacola de
compras - gostava
de massa com molho
de tomate - e só depois
esquecia que não
podia cozinhar onde
morava: já não tinha
uma casa e vivia
de favor:

"eu faço a janta
e a gente conversa",
marcão gostava.
enquanto jantava,
contava de quando
perdeu tudo numa
festa do divino,
pôs fogo numa
montanha de
sal gadinhos,
encerrou sua
própria empreitada.

usava óculos,
era magro e alto,
o nariz escorria
por causa do enfizema:
"quero rever minha
mãe, tô pensando
em voltar pra casa".

do nada que tinha,
restou uma sacola
com algumas roupas,
alguns comprimidos,
uma chave de casa
assombrada.

nunca mais nos
vimos: morreu com
a família, creio que
era seu plano.

hoje o recebo para
um café, naquele
porão úmido em que
juntos habitamos:

marcão, precisava
dividir contigo que
estou sóbrio há dois
anos.

de qualquer forma,
sul.

como promessa de
desengano.

melancolia grave
de quando faz frio.

trópico de capricórnio
redesenhado na garganta.
vi o homem deitado
no chão,
o rosto contra o
chão,
na pista direita
da BR 101
sentido sul,
sentido florianópolis.

vi o homem deitado,
iluminado por lâmpadas
de LED da polícia rodoviária
federal.

além, por cinquenta
metros
sacolas de supermercado
enfeitavam a rodovia.
teria ido às compras?
sacolas que enfeitavam
a autopista
como talvez ele tenha
enfeitado o pinheiro
no natal passado.

com seus filhos,
talvez.
com seus netos,
com os amigos que
tenha tido
e não reencontrará.

ali, na metade do
estado
pra quem vem do
rio grande do sul e
segue caminho pro
paraná.

o homem deitado
vestia bermudas e
trazia sacolas de
supermercado.

jazia ali,
atropelado,

não fazia nem
cinco minutos
que o mundo
para sempre
ignoraria
o contato de
seu rosto morto
contra a certeza
de um chão de
asfalto.


19 de fev. de 2016

aqui jaz um
poema

com todas suas
mazelas

sujo como uma
janela

que chuva alguma
daria jeito
de limpar.

aqui jaz um
poema-cela

que seprendeu
a si mesmo

- porta trancada
por fora

que não vale
a pena arrombar.
lembro das horas
espessas
quando havia muita
pressa
de ter logo
uma vida inteira na
memória .

agora um pouco
de calma:

a vida inteira pra
ser vivida
não precisa ser
vivida
exatamente agora.
correr o risco de
comprometer a
palavra:

reexistir no
extinto,

redesenhar os
destinos ,

recaminhar a
caminhada.

autorizar o
desatino,

reeditar o
manuscrito:

o poema deveria
exigir silêncio,
mas não cala.

caderno.de.economia


6 de fev. de 2016

chuva, tempestade


dona miranda
alugou um quarto
para carminha,
de quem cuidava
como se fosse filha,
conta hoje minha
mãe.

[anos depois,
uma tarde fria,
visitaríamos seu velório
com tristezas e
ave-marias]

um dia - a luz do
século XX ainda
reluzia - dona
miranda encontrou
um companheiro,
nome já esquecido,
que construía uns
instrumentos de madeira
com suas próprias
mãos.

numa visita, encantado
que fiquei com o instrumento,
ganhei de presente o meu
próprio protótipo de violão.

em hum mil novescentos
e noventa e hum,
num colégio pobre de
meninos pobres,
subi ao palco para cantar
uma nuvem de lágrimas,
de chitãozinho e xororó.

não sabia fazer direito,
não sabia cantar direito,
não sabia tocar o instrumento
que me haviam presenteado.

dona miranda, de certa
forma, teria sido indiretamente
responsável pela minha
primeira vergonha.

por todas as outras ,
até hoje e pra sempre,
eu me responsabilizo.
do lado de casa
havia uma horta
uma casa humilde
um homem solteiro
de cabelo liso e
grisalho
profissão e nome:
alfaiate.

quantas tardes
quantas chuvas
quantas perguntas
foram feitas sobre
a vida.

(explicações sobre
outros mundos,
sobre outras coisas,
explicações que ele
tirava tempo para
inventar e contar
como se fossem
verdade).

fazia café num
fogão sujo,
o café tinha gosto
de sujo,
mas eu aprovava.

às vezes, muitas vezes,
eu-criança-entediada:

"por que as
mulheres estão
peladas na revista?"

"vai pra casa",
ele me dizia.

"não vem mais aqui",
ele reclamava.

passavam os dias,
eu não conseguia;
eu voltava.

alfaiate foi
meu primeiro
desafio
e minha primeira
saudade.
paralelamente
aos fatos:
do outro lado
deste espelho
quebrado
escondem-se
verdades,
expandem-se
cidades,
recolhem-se
os cacos.

paralelas não
se cruzam,
é verdade.

pra sair do
outro lado
do mundo,
não basta
cavar um
buraco.
felicidade?
fica sempre
um pouco
mais pra
la r.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...