16 de fev. de 2018

i.
a fábrica engoliu homens
meu pai meu avô
mastigou direitinho 32 vezes
mais de 30 anos
os restos foram recebidos com festa
em almoços de domingo que não
compreendíamos

ii.
a fábrica engolia pessoas e regurgitava
máquinas pessoas e máquinas até
os homens serem teares mais que homens
operários mais que homens
mais que homens: máquinas.

iii.
nunca entrei nunca deixaram
há boatos de que os fiapos de algodão
formam braços e arrastam os incautos
para o fundo da fábrica

(uma foto do século XIX mostra como
era e como é dentro do prédio
porque lá não tem calendário
relógio ou outono: é o tempo da fábrica)

na fotografia, um homem coberto de penugem
branca. meu pai coberto de penugem branca
nos cabelos loiros esbranquiçados de algodão
e de velhice

iv.
a fábrica engoliu gente até que num arroto
expulsou a todos um a um como cachorros
a reestruturação a reestruturação
a reestruturação da década de noventa.

v.
o monstro adormecido não deixa o pai
dormir. toda noite, meia-noite, é hora
da janta. na fábrica.

o monstro adormecido não deixa o pai
dormir. o pai - vinte anos separado da
fábrica.

vi.
naquele prédio ao lado tinha uma bibioteca
- a primeira fuga, a primeira brecha
o primeiro pulo sem saber do tamanho do mundo
- eu não tinha tamanho para o desafio
mas hoje me permito e aponto o dedo
e acerto o riso
e grito
eu grito
e a fábrica, deitada, não responde
nem aceita o desafio de medir
qual dos dois
ela e eu
qual dos dois
é mais forte.

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