Kurt Cobain
a primeira vez que vi sua nudez
foi numa noite difícil no isolamento
do hospital - também foi quando dei
a ele meus passos para alcançar
o banheiro na madrugada foi também
quando me impressionei com as ampolas
de coleta de sangue arterial
- tudo tão rápido -
depois tomamos banho juntos: limpa
aqui o pirulito, levanta o braço preu
limpar o sovaco, também as pernas
as unhas cortadas, aparar a barba
tirar da volta dos olhos a ramela
para que eles brilhassem somente
azuis
- tudo tão limpo -
os chinelos alinhados ao andador
o relógio marcando as horas sempre
em ponto a morfina das 7 das 11 das
15 das 19 das 23 o criado mudo na
primeira gaveta cigarros na segunda
gaveta dinheiro na terceira os papeis
que trouxe comigo
- tudo tão certo -
depois do último suspiro (mais um,
mais outro) depois do erro nos aparelhos
feitos para medirem a pressão arterial
dos vivos, depois dos beijos todos que
dei no morto, de sentir seu calor ainda
sentir o que havia de vida ainda foi que
abri sua boca para ver o buraco no céu
da boca [desse tamanho] maior que um
tiro dado no céu da boca maior
que um tiro dado para se libertar da dor
de morrer aos poucos
- tudo tão morto -
e agora isso: o filho que procura o pai
morto que encontrou o pai ainda vivo
que encontrou o pai quase se indo
e que disse Pode ir, pai, que aqui
nos cuidaremos todos, Pode ir, pai,
que aqui nos abraçaremos e nos
vigiaremos para que não nos
aconteça tomar um tiro na boca
cuja explosão não mata na hora
e faz a vida pesada e pouca
- tudo tão nó, tão nó, tão nó -
que pra isso nunca faltou corda.
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