25 de nov. de 2023

manual de como derrubar uma parede

1. queira muito.

2. imagine a amplidão do espaço, veja além, ignore o concreto.

3. com uma talhadeira e um martelo, descasque o reboco à procura da viga - não toque nessa parte. tudo que não for viga pode ser removido.
obs: é no reboco, e não nos tijolos, que estão guardadas as lembranças; é no reboco que ficam os ouvidos das paredes.

4. com uma furadeira, faça o jogo de liga-pontos nas medidas da parede a ser derrubada. adentre a parede com a broca e veja o que sai dali. uma casa é um punhado de tijolos e argamassa bem montados. somente um lar sangra, uma casa não. e, mesmo assim, sangra por outras vias, não por buracos feitos na parede.

5. una os pontos com uma talhadeira. agora não serão mais pontos, serão riscos. e o risco, aqui, começa a ficar alto.

6. entre o que for ficar e o que for sair, ponha delicadeza. é preciso precaver-se contra o impulso de querer ver tudo abaixo.

7. já devidamente marcada a área que se quer extinta, é preciso empunhar a marreta com apego e força; não se trata mais de derrubar a parede, trata-se de bem outra coisa, como se cada golpe tivesse um nome, uma data, um rosto.

8. terminada a derrubada, é preciso recolher os destroços. para isso é preciso saber empunhar uma pá de recolhimento. aprendi com meu pai a recolher destroços, coisa que já não é mais possível - vocês não poderão mais conhecê-lo -, mas em resumo: é preciso ter a inclinação certa, é preciso ter o impulso certo para a frente, é preciso parar de forma abrupta esse impulso (a pá está cheia), é preciso saber guiar com o cabo até onde os dejetos serão depositados.

9. é preciso aparar as arestas, juntar os cacos, olhar atrás do armário, embaixo da cama: sempre sobram vestígios.

10. é preciso acostumar-se com a falta que a parede faz quando não está ali. porque já esteve, mesmo que não pareça. talvez já tenha estado, mesmo que não se lembre. algum dia houve uma parede aqui?

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