3 de set. de 2020

a primeira vez que pisei os pés na rua de casa: 
uma rua da capital - a rua do príncipe, por onde
passavam os cortejos fúnebres até o cemitério
que não existe mais - os mortos ainda hão de
derrubar essa ponte que lhes tirou o sossego
e forçou sua mudança - em que tantas vezes
caminhei com Luiza, que me falava de o centro
ser o espaço mais bonito dessa cidade porque
é aqui que caminha o povo
- como Fábio, o viciado que faz tempo não vejo e que
deve ter sido enterrado como indigente numa cova
rasa; Fábio foi quem primeiro me estendeu as mãos
primeiro para pedir trocado, depois para me perguntar
se eu estava bem - os olhos tristes de quem não vê
futuro, a vontade que eu tinha de ser livre como ele;
ou isso, ou voltou para casa, o que dá no mesmo
porque há retornos que matam, e a mim me mataria
percorrer aquelas mesmas ruas. mas disso não vale
a pena falar.
os trajetos: cruzar o centro para encontrar André,
cruzar o centro para encontrar Rodrigo, cruzar
o centro para encontrar João naquele mesmo café
onde somos mal atendidos e onde nos servem como
se nos prestassem um favor
(outro dia, toquei o braço de Rodrigo e fazia tanto
que não o tocava; de André nunca mais soube,
João me trouxe mais daquele doce de jaca
e bananas vermelhas; falamos de literatura)
hoje o restaurante de seu Itamar estava fechado
então fui pedir a marmita do Carioca - seu Itamar e
o Carioca são povo e estão no centro desde antes
de Dias Velho aportar por aqui, eles me disseram
(são piratas, eles; por isso esse ar salino).
o vendedor de raquetes contra mosquitos e agulhas
de fogão, seu pregão anasalado, sua fala pausada
- se vende droga ou abortivos, nunca saberemos -
a mesma rua em que me escondi com Manu daquela
chuva de verão (um calor medonho àquela hora da
noite) e por onde caminhei com Gustavo fazendo
confundir lágrimas e chuva no rosto em nossa última
despedida; no sábado fez sol, então Caio e eu fomos
à praia antes do voo; escondi minhas lágrimas
no mar porque se Caio me visse chorando talvez
se partisse ao meio só para me fazer rir;
Maffeis não caminhou por essas ruas comigo,
mas quando isso acontecer terá sido como se
sempre;
Matheus voltou da Alemanha mas não alcançou
a minha rua por causa da pandemia;
Milton não alcançou a minha rua
porque somos dois fodidos
e eu faço questão de pagar suas passagens;
Bruna vinha, e ainda virá;
outro dia ofereci a casa para Camila;
Rafa vinha também;
Ithalo disse que no ano que vem;
quando Vinicius trouxe aqui o pai e a mãe
nunca me senti tão orgulhoso de ter uma
casa onde entrarem, se sentarem, almoçarmos
e depois eu fui grande dizendo a Vinicius para
dobrar à direita e à esquerda enquanto passeávamos
de carro por essas ruas - eu que sempre ouvi à direita
e à esquerda de meu irmão porque ele sabe todos os
caminhos e sabe que dói e sabe onde dói só não
tem jeito com as palavras;
Ligia vem também, me disse;
como foi difícil aprender a andar sozinho onde
caminhávamos juntos: eu nunca sei olhar
o caminho, por isso esbarro nas pessoas,
por isso deixo de cumprimentar os conhecidos
: cato poemas na sujeira da rua, penso num romance
novo encarando um rato gordo (come melhor do que eu,
parece); compro cigarros na rua de cima, compro
cachaça para meu Exu ao lado de onde compro incensos;
não quero mais sair de casa enquanto não souber
que nos encontraremos todos, e porque saudade
é um prato insosso que nos faz doer o coração
e chorar de saudade enquanto o relógio tic-tac
esmagando o peito
enquanto salivo ao dizer teu nome.

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