26 de mai. de 2020

[é preciso despedir-se do morto
tocar-lhe as mãos frias encarar
seu cenho sem expressão orar
palavras de coragem é preciso
deixar o morto ir]

então perdoa se não
cheguei muito perto
se tudo que fiz foi
esconder-me atrás
de nosso amigo mais
corajoso.

[é preciso suportar o abraço
da mãe do morto seus gritos
que te dizem Aí vai teu amigo]

e se possível a correção, diria
o primeiro amigo - ou não,
mas com o tempo tomamos
a liberdade de tornar tudo
mais dolorido.

[é preciso chorar o morto,
despedir-se. é preciso relembrar
o morto, revirar álbuns em busca
de uma fotografia que diga ela
própria o quanto fomos felizes]

dois meninos. eu, tão franzino,
invejava teus ossos pesados
teus dribles de quintal teu ar
amorenado e tua teimosia
(que não foi tão forte a ponto
de te manter na vida)

[é preciso visitar o morto]

tua fotografia de beca e capelo
numa lápide simples. devia ser
uma bola um lenço escoteiro
um brinquedo um comandos
em ação um foguete espacial
um video-game as pérolas que
descobríamos no jardim de tua
mãe o instrumento que copiamos
do fantástico para caçar fantasmas
(no sótão da casa velha de teu bisavô,
que já demoliram) uma bicicleta duas
um taco de bete mas lá tem apenas
uma foto tua de beca e capelo.

[e deixá-lo descansando]

pela eternidade ou aquelas nossas
horas. outro dia, parei em frente
a tua mãe e disse sou eu, o marcelo
labes e ela sorriu, envergonhada
porque já não enxerga - todos esses
anos foi questão de vista - outro
dia de novo e de novo basta apenas
anunciar sou o marcelo labes
para tua mãe sorrir como nos sorria
quando éramos meninos.

[é preciso esquecer do morto]

e não retomar seu nome a cada
passo em falso na vida a cada
tropeço a cada falha minha diante
dos outros - eles esperam tanto
de mim, eles esperam que eu seja
seja seja escreva escreva escreva
- mas ninguém sabe que aos
meninos basta um pouco de
silêncio um pouco de afeto
um abraço longo de reencontro
aqui ou aí, quem sabe
aí, é claro, que mortos não voltam
à vida a não ser em poemas
escritos às pressas com a leveza
demorada de uma despedida.

[é preciso também viver
é preciso também morrer]

como dizem que tem que ser
como dizem que tem que ser.

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