12 de fev. de 2009

Feira livre.

Quinta-feira. Nenhuma data importante, mas como diz o gerente da seção, todos os dias são realmente muito importantes. Pela janela, podia-se ver que amanhecia. Poderíamos ver, se ali estivéssemos. Ele, por enquanto, dormia. Quinta-feira era dia de auditoria na seção; papéis seriam requeridos, papéis seriam encontrados, papéis seriam analisados e arquivados. E era essa, exatamente, a sua função: cuidar dos papéis. A cidade acordava. Aos poucos, cada um seguiria atento para suas responsabilidades e ele teria, como era quinta-feira, um dia de muita responsabilidade.

Acordou. Nem um movimento mais, a não ser o dos olhos, que se abriram rapidamente, assustados, e procuraram pelo despertador — que não somente o acordava, mas lhe lembrava que a rotina é necessária, que os compromissos estão aí para serem cumpridos e que cada um tem a vida que merece. Merda de despertador. Procurou-o. Todos os dias, essa necessário de buscá-lo, porque cada vez colocava o relógio em um ponto diferente do quarto. Assim, não corria o risco de desligá-lo com a mecanicidade com que batia o cartão-ponto todos os dias, por exemplo.

Todos os dias acordava moribundo. Da mesma forma, levantava, punha água para esquentar e dirigia-se para o banho. Moribundo. Cansado, isso sim. Melhor dizer de saco cheio. Todos os dias era preciso que o despertador lhe lembrasse da necessidade de ser responsável, do quanto é preciso lutar e sofrer para conseguir algum tipo de estabilidade nessa vida de merda. O despertador e o chefe da seção, no fim, eram a mesma pessoa, mas com carcaças diferentes. Debaixo daquelas peles — uma de plástico, a outra recoberta de musgo — habitavam seres exatamente iguais, com a mesma função em suas vidas ditas úteis. Quanta reflexão interessante consegue ter uma pessoa normal ao acordar.

Nessa quinta-feira, não levantou, não pôs água para esquentar nem se dirigiu ao banho. O despertador tocava, mas como havia mesmo se acostumado com tanta irritação, dia após dia, por que não conseguiria se acostumar com o ti-ti-ti do relógio? Agüentava o chefe da seção e essa era a maior prova de paciência que poderia ter conseguido para demonstrar a forma surpreendente como se acostumava com a vida que levava.

Da mesma forma como havia conseguido com o despertador, com o chefe da seção, com os ônibus lotados — de manhã e à noite — e com a Voz do Brasil, haveria de encontrar uma forma de lidar com sua cama e seu quarto, de onde não sairia nos próximos dias. Hesitou. Se seria mesmo capaz de não se mover, isso era de se descobrir. Mas já que agüentava os ônibus lotados, o chefe da seção, a fila do café e o despertador, conseguiria sim se acostumar com o ócio, a falta de movimentos mecânicos, a ausência de companhias desagradáveis, os cheiros todos que lhe lembravam de um tempo que não tinha certeza se já havia passado ou ainda estava por vir.

Sem mover qualquer músculo, se não os responsáveis pela órbita dos olhos, observou atentamente, através da fresta na cortina, que o sol já ia alto. Perdia o ônibus, o horário de entrada no escritório e, por ser quinta-feira e não ter comparecido — ainda mais sem uma justificativa muito convincente — perderia também o emprego.

Fechou os olhos e fez um último movimento notável: virou-se para o lado e voltou a dormir.

4 comentários:

Marina Melz disse...

Enquanto ele, lá, numa quinta-feira, dorme, eu, aqui, numa quinta-feira, olho para o despertador coberto de musgos. Ainda sorrio.

viegas disse...

Labes, gostei bastante deste conto, da narração, desta lógica sartreana. Encontrei aqui todos os elementos que procurava no "Olheiras Postiças" e não encontrei. Neste "Feira Livre" o cotidiano emerge em toda a sua mediocridade, e tanto faz quanto tanto fez, um dia o mundo acaba mesmo. Lembrei-me do "Eclesiastes". Parabéns pela prosa!
Abraço fraterno,
Viegas

Marcelo Labes disse...

Viegas, procurava exatamente o que faziam destes dois textos tão parecidos, tão diferentes entre si. Agora sei, muito obrigado!

Abraço!

Elaine Cristina disse...

Fui lendo, lendo, lendo... mas depois desse, por hoje chega! Já teve um lá trás que me fez ter vontade de fazer o mesmo, mas esse aqui... ah! Que bom que amanhã ainda é quarta tenho ainda um bom tempo para desistir!

Bom mesmo!

Um beijo pro personagem, de uma coragem invejável, outro pro escritor!

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...