9 de fev. de 2009

Olheiras postiças

3:51. Se não dormiu até agora, não é agora que vai dormir. Tudo em que pensa confunde-se com o barulho da chuva e com os roncos esparsos de um e outro veículo que a essa hora visitam a solidão da cidade.

“Meu pai”, pensa, “cobrando essa merreca de trezentos paus. Vou dizer pro velho ‘Porra! trezentos paus, choramingando isso? E se eu for te cobrar os vinte anos? Vinte anos!’ Não vou dizer. Mas devia. E devia dizer mais. Devia fazer o velho chorar por mim como chora pelos outros”.

“O aluguel, a gente devia combinar melhor: paga quanto acha que deve. Esse mês, por exemplo, não tenho grana. Não quero pagar nada. Não tenho como, por isso não quero. O pouco que consegui juntar é pra comida. Arroz, feijão, azeite, sal e lingüiça defumada. Não vão me deixar sem a lingüiça. E tem os trezentos paus do meu pai. E se eu disser pra ele que não tenho como pagar, que fico sem comer?”

Tenta acordar a mulher que dorme ao seu lado. E se conseguir? Poderia contar uma piada. “A essa hora só se ri sozinho, só assim”. Não conta para si a piada, já conhece o final. E não pode ligar o rádio. Não tem como telefonar, o telefone cortado. “Pra quem eu ligaria? Pra um 0800, conversar com a telefonista. Bom dia, moça, qual é o teu nome? Não, não tem problema nenhum aqui, não tenho código de assinante. Não, não sou cliente. Ela desligaria, eu discaria de novo o 0800 e já seria outra pessoa do lado de lá: bom dia, moça, tudo bem?”

“Mamãe pareceu triste ontem. Acho que por causa do emprego, digo que não quero ficar, não nasci pra isso. Sempre me culpando, a velha. Eu digo: sou assim, assim me fizeram, passo fome só às vezes, querem o que de mim? Não dou despesa nenhuma. O aluguel que paga, paga porque quer. Se me desalojarem, morre de medo que volte eu para casa.”

“Só pode ser isso. Puta merda: o relatório do chefe. Diabo de insônia! Aquilo era jeito de falar? Claro que ia esquecer. Esqueci por gosto. Ou esqueci porque esqueci mesmo. 'Arruma essa merda e me traz corrigido!'. Vou dizer que perdi o arquivo. É capaz de ele acreditar. Vou fazer melhor: não vou trabalhar e outro trouxa vai levar a culpa. Acho que ele nem sabe o meu nome. Vai na mesa do lado da minha, se confunde, chama outro de incompetente. Apareço semana que vem, arrumo um atestado”.

“Mês que vem pago o pai. Eu que pedi, a culpa é minha, sou eu quem tem de pagar. Vou ligar logo cedo pra dizer que não vai dar agora, que fico sem a lingüiça, ele vai entender”.

“Essa coisa de acordar cedo é um vício cristão”, pensa. “Acordar cedo pra que se possa aproveitar o dia, almoçar ao meio-dia com a família, trabalhar durante o dia pra dormir à noite, tranqüilo. Acordar cedo pra que todos sejam felizes: Deus, patrão, pai, mãe: tudo vício, todos viciados. Acontece que hoje não vou trabalhar. Foda-se. Os trezentos que devo pro pai, pago quando puder. Foda-se mesmo. Bando de viciados”.

Às 5:57 desliga o despertador para não acordar a mulher. São mais comuns os carros passando. A cidade acorda. Sonolenta, limpa a remela da noite — nevoeiro — e procura espaço para receber o sol. 6:10: Roberto, o rabo enfiado entre as pernas, lava o rosto sem se olhar no espelho. Na ponta dos pés, adentra no quarto, pega as roupas cuidadosamente dobradas de sobre a cadeira, veste-se, beija a testa da estranha ao seu lado e vai trabalhar. As olheiras bem poderiam ser postiças, as retiraria quando não fossem necessárias, quando não combinassem com a roupa que usa ou com o sol de lá fora, que começa a aparecer.

As olheiras bem poderiam ser postiças, mas não são.


Na gaveta desde julho de 2008.

4 comentários:

Marina Melz disse...

Se as olheiras fossem postiças, Roberto também teria que pagar por elas.

Marcelo Labes disse...

Sem dúvida que sim. Mas poderia - sonho dele ou do narrador - optar por usá-las quando lhes conviesse, embora seja uma equação falida essa.

Anônimo disse...

Malditos viciados. Todos nós inclusos.

Marcelo Labes disse...

Sem dúvida, sem exceção: todos!

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...