6 de fev. de 2009

Dona Santinha

— Lê pra mim, Zenaide. Como é o nome?
— Dormilex, Dona Santinha. Dor-mi-lex.

Santinha, a vizinha do lado da casa de Zenaide, não sabe ler nem o próprio nome. Decorou o desenho e, letrinha por letrinha, o nome não lhe falta à necessidade de escrevê-lo. Santinha não dorme, a coitada, por isso precisa dos remédios. Sofre de saudade do marido morto, que falta faz o falecido. Sofre pelo filho bêbado que lhe rouba os trocados da pensão. Sofre pela boa nora, que apanha, e é pele e osso, a coitada.

Zenaide é auxiliar de enfermagem. Veste branco, é doutora.

Santinha todo dia no médico. “Angústia no peito, doutor”, reclama. “Dor no peito, doutor”, suspira. E nem Dormilex faz Santinha dormir. “É uma angústia, Sileide, essa vida!”. O coração fraco, a saúde que se vai com o tempo, tudo é tristeza e mágoa. Dona Santinha, os olhos cansados, pergunta à amiga:

— An-gus-ti-ol! Angustiol! Lembra a angústia? Remédio pra angústia!”, ensina Zenaide. Santinha repete e repete e já sabe todos os nomes. De fórmulas nada entende, mas confia na amiga.

“Flexitonazol!”.
“Artimioziopã”.

Zenaide vê mais, doutora que é. Assim pensa a Santinha. Um dia, aparece com pílulas brancas, sem desenho nem letra em cima.

— Pra que servem?, pergunta Santinha.
— Pra tudo, reflete Zenaide.
— De onde vêm?, indaga Santinha.
— Roubei do hospital, é muito caro, não tem pra comprar na farmácia nem em hospital de pobre.
— Resolve?, anseia Santinha.

Santinha, enfim, dorme. Acorda mudada, limpa a casa, arruma um cachorro por companhia. Abre as janelas, rega as flores. Põe o filho pra fora de casa, chama a nora para morar consigo, arruma namorado no baile. Toda semana, Zenaide traz os comprimidos. Santinha segue a receita: um para acordar, um para dormir. Zenaide sabe, aprendeu de ouvir enfermeira falar. Farinha, água, pitada de açúcar, pitada de sal.

Santinha, vida nova, todo dia agradece à amiga. “Café hoje à tarde, Zenaide?”. Da angústia, não se lembra. Da insônia, mal se recorda. Esquece o nome do remédio, bate à porta da amiga:

— Zenaide, como é mesmo o nome?
— Por que, vai ao médico de novo?
— Não, minha filha, é só pra ter guardado, pra agradecer a Deus.
— Placebo, Dona Santinha. Pla-ce-bo.
— Esse é mais fácil.

Zenaide anota o nome no papel que Santinha dobra e guarda dentro da Bíblia que nunca leu, que nunca lerá.

2 comentários:

Marina Melz disse...

Uh (com os olhos arregalados)! Forte isso. Bããããã (com a cabeça indo ligeiramente pra trás). Agora vou ficar pirando nisso uma - ou duas - horas.

Rodrigo Oliveira disse...

Sem o último parágrafo tava legal. Mas a cereja em cima do bolo faz uma diferença... E seguimos nós com todos aqueles papos de sexta. Pla-ce-bo.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...