16 de fev. de 2009

Remorso.

Horas depois, diante do delegado, pensou que talvez houvesse uma saída, não aquela. O próprio delegado entendia o caso, mas era obrigado pela sua função a prender o assassino. Uma mulher, dois homens, chegou a pé, o carro quebrado na esquina — não fez barulho, por isso nenhum cuidado a mais foi tomado pela sua chegada. Houvesse o ruído longínquo da Brasília subindo o morro, punha os dois pra correr, nada se saberia.

Um grito. Dois homens tentando vestir as calças — não se corre de marido traído com as calças na mão. Na dúvida, enfrentar o corno. A mulher lambuzada de porra pelos cabelos gritando que não, não fizesse, não matasse. Vestidas as calças, daí sim, correr. Lourenço, homem bom, trabalhador, que nunca segurou na mão uma arma de fogo, as mãos calejadas, encontrou pelo caminho a foice de limpar arbusto. Limpou a honra na carne mole da mulher amada.

***

Vitório, que se tinha esse nome por analogia, ficava na analogia mesmo. Homem mendigo, sentado tomando pinga com um outro, contava sempre histórias, uma à qual sempre retornava: um setembro, primavera ou não, parecia ser, o dia claro. Arrumou uma trouxa de roupa, levou consigo os cobres dos velhos. À cidade! À cidade! Que só lá se podia ser feliz: trabalhar duro, arrumar uma moça, construir uma casa.

Um dia, a pinga: a moça embora, o trabalho pesado, a casa difícil. A pinga e a vontade de viver no sítio, criar gado, plantar aipim batata feijão e milho. Acordar cedo, dormir cedo, baile no final de semana com sanfona e cantoria. Talvez não devesse ter roubado os velhos: a pinga era o castigo. Lembrança da mãe morta, do pai morto, saudade do pai e da mãe. Vinte anos de pinga. Se tivesse esperado um pouco, se não tivesse feito a trouxa de roupas ralas, se tivesse pensado melhor.

***

A fronteira: calor, mosquitos, umidade, calor. Sair dali, ir pra São Paulo, conhecer o Rio de Janeiro. Um pouco estudado, funcionário público. Lurdinha grávida, os maiorzinhos sabendo a televisão. A proposta: deixar passar o carregamento, uns trocados no bolso. Mais um carregamento, mais uns trocados. O mato em volta o ouvia: “nessa merda de Amazônia, quem vai saber de mim? Quem quer saber de mim? Vou-me embora!”

Lurdinha chorando em casa: o dinheiro, gastava na zona. Nunca batera nela, agora soco e tapa de mão aberta. Maldito que cheira a aguardente e a doença venérea. Ela mesma deu um jeito de avisar os soldados. Soldado sofre mais, não permite que alguém se safe. Quando começou a apanhar, disse que a culpa era do calor, aquele verde todo, nenhum sinal de cidade em milhares de quilômetros. Meteram-lhe a baioneta no cu e ele respondeu em castelhano: “Hijos de la puta!” Lurdinha, coitada, os cinco filhos, lembrava do Ernesto morto: saudade do safado na barriga doída de vazia.

5 comentários:

Marina Melz disse...

Os socos e ponta-pés atingiram meu estômago.

Marcelo Labes disse...

A intenção era, na verdade, me livrar dos socos e pontapés no meu próprio estômago. Que bom que acertaram mais alguém.

Costa disse...

Personagens fortes saem dessa linha. O trabalho, a moça, o baile e a sanfona me soaram bem "fundamentais". Regionais. A fonte de alegria e sofrimento varia tanto de gente pra gente...como pode?

Marcelo Labes disse...

Varia?

Anônimo disse...

A gente acaba sentindo remorso por quase tudo nessa vida. Matar, beber, morrer. Tudo nessa vida parece tão errado, que não sabemos mais o que o é.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...