24 de mar. de 2009

Desberto.

Desberto mora num casebre construído na beira de um barranco onde perto passa um rio longe de todo e qualquer conforto urbano. Ele mais as crianças, sete, a mulher, vez por outra um primo que vem do sítio procurar emprego, acaba ficando, bebe a pinga do Desberto e vai embora sem porra de emprego nenhum e deixa o homem enciumado.

Desberto trabalha na obra, porque disseram que pagava bem. Pobre coitado, carrega cimento pra cima e pra baixo, levanta ferro na corda, empunha com sacrifício a tora do alicerce. Da obra, só ganhou calo na mão e pele morena do sol. Oito anos de moreno de sol.

Desberto tem os filhos, a mulher, um passarinho pego na armadilha e um cachorro pulguento. Não tem máquina de lavar nem televisão. Tem ali um rádio a pilha onde houve rádio AM no domingo de manhã.

Nada espera do mundo, o Desberto. Rico nunca vai ser, bonito nunca foi, homem só sabe que é porque tem mulher e ela emprenha vez atrás de outra. Desberto espera, na segunda-feira, que chegue logo o sábado, que chegue logo o domingo. De repente, um vizinho mata um porco e trás pra ele, pro Desberto, um pouco de morcilha, uns pedaços pro feijão.

Nem ler, nem escrever, mal contar. Alegria sem sorriso, porque pouco dente na boca e alguma vergonha do vazio na boca aberta. Tristeza misturada com raiva do velho lazarento que lhe arrebentava a cara quando era moleque. Não chamava de pai, chamava de lazarento mesmo.

Mas um carinho da esposa. Carinho cheirando a cloro da mão da Maria faxineira que limpava casa de rico quinze dias por semana. Carinho tímido do filho mais velho que tem vergonha do pai Desberto porque tem esse nome e porque não tem nada no seu nome, só esse filho mais velho mais seis.

Não se pode dizer, no entanto, que Desberto é um homem infeliz. Não sabe o que é ser feliz, isso sim. Aliás, não sabia. Quando soube, era tarde.

Desceu do ônibus, era escuro. Era escurecendo. Viu longe, vindo do morro, nuvem de fumaça. Nem deu atenção. O vizinho ia mesmo queimar lixo lenha matagal. Foi chegando perto, ninguém na rua, um outro correndo morro acima, direção da moradia do Desberto.

Chegou perto, viu a cena: o casebre labareda alta o fogo comendo a madeira e o papelão. Perguntou se a mulher estava, disseram que sim. Perguntou dos filhos, também estavam. Do cão não perguntou, nem do passarinho: certamente que estariam.

Lembrou do velho lazarento lhe esbofeteando a boca, a cabeça, a barriga. Lembrou da promessa da obra, do dinheiro da obra que nunca veio, do dinheiro que nunca veio nem nunca virá pra gente como Desberto. Pensou na mulher, no cheiro de cloro na mão da mulher e soluçou. Tentou lembrar dos nomes dos filhos, não sabia de cor. Sua família.

Um passarinho que cantava e já não canta, virou cinza. Um cão amigo que não late nunca mais. Desberto morto, não sabiam o que ia fazer, pensaram que ia chegar perto, chorar perto do fogo, tentar salvar uma madeira, uma mesa, um colchão. Desberto no meio do fogo sem gritar, sem chorar e sem sorrir. Apenas no meio do fogo, queimando rapidamente a lentidão da chama que lhe abrasava a vida sem nenhuma pressa.

2 comentários:

Marina Melz disse...

A ignorância da felicidade pode ser uma dádiva. Afinal de contas, assim como a heroína e o teatro, se passa a vida inteira buscando uma mesma sensação que talvez não se repita. Resta queimar o sorriso, então.

Rodrigo Oliveira disse...

bah, bem bacana esse. não sei porque, mas a imagem do passarinho queimando me ficou na cabeça. a gaiola, talvez? Mas interessante este Desberto...

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...