22 de mar. de 2009

Seu nome: Jorge.

Fazia muito tempo que o Jorge tinha decidido passar a corda no pescoço e pular da cadeira. Compartilhou sua certeza de que não valia a pena com a psicóloga, que armou pra ele: contatou a família e prescreveu seis semanas na clínica. Buscaram Jorge em casa e ele nem se alterou. “Camisa de força?”, perguntava sorrindo, “não será necessário”. Entrou na ambulância com a certeza de que jogaria o jogo deles pelo tempo que fosse necessário.

Ao sair da clínica, tudo meio nebuloso por causa dos remédios, decidiu que ficaria quieto, não provocaria e não daria a eles conta de suas insatisfações, de sua visão pessimista da vida, da sua e da deles. Voltou a ter com a psicóloga, de quem ouvia conselhos e que parecia não ouvir o que Jorge realmente dizia, porque mentia, claro está, e ninguém se dava conta do tamanho do embrulho de presente com que Jorge abraçava sua vida.

Foi ter com o padre. Talvez que a Igreja desse conta do vazio que o atingia em cheio, da boca ao ânus. Do senhor asséptico que lhe falava, Jorge anotou considerações importantes: uma família, uma casa melhor, um carro melhor, um emprego que deixe para os filhos um pouco de si, um futuro, se não brilhante, ao menos promissor.

E Jorge foi a fundo perseguindo suas novas metas. Sua seriedade enganava: ninguém percebia que Jorge nunca sorria. Até que alguém notou: “Olha, o Jorge não sorri”. A resposta, direta e seca: “Quem tem objetivos não perde tempo a mostrar os dentes”. A resposta coube, porque nunca mais perguntaram a respeito. E nunca mais alguém se incomodou com o fato de Jorge alcançar seus sucessos e, nem por isso, parecer uma pessoa feliz.

Fez tudo direito: encontrou uma esposa, fez três filhos nela. Formou-se, finalmente, na universidade. Abrira sua própria empresa há poucos dois anos e já era líder no seu segmento. Mesmo sem sorrir, Jorge conseguiu o respeito da família, dos amigos, do padre e da terapeuta. E de sua família: ali estavam as três crias, eram a sua cara, e talvez que não compartilhassem com o pai o sofrimento surdo que o fazia emudecer, no meio da manhã, pensando no silêncio que não se encontra por estes mundos de cá.

Tivesse acontecido dez anos atrás, talvez que seus pais sofreriam por muito tempo a perda bruta de quem morre porque quer morrer. As vizinhas, conselheiras da vida alheia, escreveriam teorias de crochet sobre a vidinha do Jorge: faltou amor de pai, faltou amor de mãe, faltou Jesus no coração, sobra revolta nessa juventude louca.

Tivesse acontecido dez anos atrás, não sentiriam tanto a sua falta. Em volta do corpo flácido, sustentado por uma cabeça desfigurada e oca, cartas calmamente escritas a seus destinatários. Para a esposa, para cada um de seus filhos, para o pai, para a mãe, para cada um dos irmãos, para um e outro amigo, para o padre, para a terapeuta.

Todos chocados, visivelmente chocados, devem ter entendido, cada um à sua maneira, que adiar
o inevitável é somente motivo para sofrer por mais tempo, por mais dez anos, como sofrera o Jorge. Devem ter entendido, sem dúvida, porque daquele dia em diante, nunca mais se falou uma palavra a respeito. Um orgulho indecente fazia com que se calassem cada vez que fossem pronunciar o seu nome: Jorge.

9 comentários:

Lou disse...

Bah, acho ótima essa acidez. E isso aqui quebrou feito copo de cristal em chão de mármore: "Quem tem objetivos não perde tempo a mostrar os dentes". Sabe? Enfim.

Um beijo.

Marcelo Labes disse...

O que me quebrou foi a imagem do cristal no mármore. Sei sim. Mas é por isso que eu mostro os dentes? Enfim. Beijo.

Lou disse...

Estamos quites então.

Mas por que tu mostra os dentes? (é uma pergunta de verdade)

Marina Melz disse...

O sorriso, assim como o abraço, pode dizer tanto quanto quanto pode calar. A diferença é saber ouvir.

Marcelo Labes disse...

A diferença é saber sentir-se abraçado, sentir-se destinatário de um sorriso.

Marina Melz disse...

Não, a diferença não é saber sentir-se. É só sentir-se. O sentir fica acima do saber.

Marcelo Labes disse...

Pode ser também.

Lou disse...

Se sentir fica acima do saber, eu não sei. Acho que não tem como saber se não sentir. Ou tem? Se tu sente, tu sabe, pelo menos, que está sentindo. Às vezes tu pode saber, mas não sentir. Confundi? Que bom.

Marcelo Labes disse...

Sentir sem saber é religião. Saber sem sentir é ceticismo. O meio-termo é que é complicado. E inalcançável no mais das vezes.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...