"Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo"
João Baptista Figueiredo
Desculpa, moço
se o cheiro que
emana de mim
lhe desagrada
o seu tão fino
nariz:
é que eu tava
trabalhando
é que eu tava
descansando
é que eu tava
ali do lado
fazendo nada
de errado
e a polícia
chegou em mim.
Daí que é assim:
a gente sua,
a gente se esforça,
a gente às vezes
é o cavalo
e às vezes
é a carroça.
Então que não
dá pra disfarçar
isso que pode
ser fedor
só com perfume
barato.
A gente fede,
moço,
eu sei.
Mas não é cheiro
de rato, não:
a gente emana
muito de sonho
perdido,
muito de sonho
estragado,
muito de noite
acordada,
muito de dia
nublado.
E esse cheiro
que te faz
torcer o rosto,
moço,
não é por eu ser
preto,
não é por eu ser
branco, se
às vezes sou
angolano
e às vezes
japonês
- mas o meu cheiro,
moço,
não tem a ver com
etnia,
não se explica
na geografia
ou não sei:
talvez se a gente
levar em conta
essa nossa necessidade
de sempre pagar mais
caro
qual seja for o valor
da compra.
Não dá pra ter cheiro
de flor se a gente
vive sendo espinho;
não dá muito pra
respirar
quando se
vive apertado
e sozinho.
Daí que o seu
problema com
o meu cheiro
é talvez um problema
unicamente seu:
porque isso que exalo
é cheiro de gente,
de povo.
Me desculpa se até
aqui não disse
nada de novo,
mas preciso ir
pra labuta
novamente.
Só um recado
que talvez lhe
sirva:
a gente fede desse jeito
é porque a gente luta:
todo dia de manhã
até quase a noitinha,
virando a madrugada
quase até de manhãzinha.
E se ouvir dizer de nós,
que andamos perfumados,
é que a luta de que se fala
acabou virando de lado:
foi pro lado dos livros,
da teoria importada,
dos diálogos compridos,
da verdade imaginada.
Por isso, moço,
lhe digo
que esse cheiro
de povo
(alguns dizem de mendigo),
é original e é nosso,
tão américo-latino
que não espanto se o moço
não quiser sentar comigo
pra escutar meu endosso,
pra aguentar esse osso,
esse meu cheiro de poço,
esse meu cheiro divino.
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