19 de nov. de 2016


o concerto começou com jesus a alegria dos homens, tocado ali, no parque, palco improvisado num caminhão, o que as pessoas pensavam que se tratava, afinal era um concerto de piano. no palco, arthur moreira lima, o pianista que tocou em mais lugares do planeta, em mais cidades brasileiras, o pelé dos teclados, segundo o anunciante. todos ali esperando, ansiosos, aparecer o homem, o olho no telão e nas cabeças das pessoas. lizst, bach, uma versão linda e preguiçosa de trenzinho caipira, ninguém tirava os olhos do homem. ninguém se mexia. deixei de acender algum cigarro para que a fumaça não atrapalhasse o concerto de piano ao ar livre, a bem-aventurança da cultura erudita iluminando cada um de nós, pobres mortais, ali no parque.

era fim de tarde.

veio uma vontade de mijar.

então caminhei em direção ao banheiro público me afastando dele, o homem iluminado sobre o palco improvisado, para me aliviar da bexiga cheia, a passos incoerentes, desviando das pessoas hipnotizadas pelo som do piano tocado de maneira magistral. não havia água no banheiro. fila para usar o mictório. aquele cheiro de mijo evaporado. ali dentro, um homem de vinte e poucos anos, dois metros de altura, cento e cinquenta quilos - suponho - e uniforme azul manuseava um rodo sobre o piso quase-branco: juntava a urina amarela escurecida pelas pegadas. era mijo, era terra, água não havia, ele manuseava o rodo em direção à porta, a poça que se formava era arremessada na calçada.

o rodo era seu piano, pensei.

daqui não dá pra ouvir o concerto, calculava.

escureceu. o ilustre pianista arthur pereira lima bailava suas mãos sobre o teclado enquanto o dia se ia. gnattali, villa-lobos, pixinguinha. as pessoas aplaudimos de pé, emocionadas, quando no fim das variações de asa branca. o concerto terminou, não me lembro, talvez com chopin.

e talvez os mais apertados tenham corrido diretamente para o banheiro a fim de aliviar a bexiga. chegando lá, não terão encontrado água. talvez tenham acorrido à fila do mictório. as pegadas sobre o chão de mijo escurecendo o piso úmido. quem não estivesse preparado, talvez, naturalmente, tenha se assustado com aquele homem suado que manejava o rodo sobre o piso molhado, formando poças de mijo que iriam ter fim na calçada. o homem suado que não parecia se ocupar do cheiro insuportável de urina aquecida, evaporada, respirada.

que tal o concerto?, alguma voz poderia ter perguntado.

só amanhã - teria respondido. só amanhã para o encanamento ser arrumado.

enquanto isso, o cheiro de mijo. todos os dias, o mijo. em alegro. alegro ma non troppo. alegro molto. alegro maestoso.

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