8 de abr. de 2009

Soltura.

Andei lembrando de umas coisas, maninha. De um tempo bem tempo atrás, onde não existia morte — deve ter passado a existir logo depois disso, porque não lembro. Era eu e eu e o mundo. Tudo era grande, quase tudo era bonito.

Havia proibições, mas o que fazer com elas naquela altura da vida? Dentro de uma gaveta, eu lembro, papai guardava seu trabalho: uma tesoura de tecelão, um dedal e os tapadores de ouvido. Trinta anos de trabalho naquela máquina, maninha, que ele chamava de a minha máquina. Tapa na mão quando abria aquela gaveta (o trabalho era ainda tão distante) e um grunhido: nem palavras havia ainda.

Tu devias ser um colo, uma mão a passear os dedos pelos meus cabelos loiros, uma nuvem na cabeça, aquele fios brancos e amarelos que escureceram e me fizeram feio. Maninha, descobri tanto tempo depois que bonito era ter a cabeça branca daquele jeito. Mas tu devias estar por lá, quando era tudo bonito e eu jamais te perguntarei se era bonito também para ti: essa beleza é só minha, só minha!, e é um caminho de dominós emparelhados: tocas o dedo e desmorona.

Tudo desmorona. Sinto falta do cão de que nunca vi. Deves tê-lo chamado Ron, porque ele ronronava ron ron ron perto de ti, mas acabou que papai um dia foi chamá-lo e não soube dizer (tu sabias que ele não sabia dizer?) Ron e disse Rão. Engraçado, né, porque com pão ele também não consegue e diz pón até hoje.

Não sei de ti naqueles tempos, maninha. Sei de pouca coisa. Não havia sobre minha cabeça mais do que nuvens que apareciam às vezes: a nuvem da fome, a nuvem do sono, a nuvem negra de umas palmadas que levava — nessa época fazia arte no melhor sentido: era puro prazer.

Depois vieram os passos melhores, traquinagens maiores, e tudo ficou muito vago. Tu nunca me viste escalar a pia da cozinha e buscar, em cima do armário embutido, um cigarro Campeão que papai fumava naquela época. Tu nunca me viste fazer muita coisa. Havia um tempo em que não havia muito que se fazer. Era tão bom. Tu te lembras, maninha? Não me incomodo se disseres que não.

6 comentários:

Anônimo disse...

as lembranças mais saudosistas se bastam, por si só.

Rodrigo Oliveira disse...

tenho estado meio ausente ultimamente. o q era pra essa semana nao deu pra ser, e a semana já se vai. Na próxima, se der, bebericamos algo, blz? Abraço

Lou disse...

Eu imagino como isso deve ter sido difícil. Ou como seria difícil se a maninha lesse. Já leu? Enfim. Palmas, Marcelo Labes.

Marcelo Labes disse...

Claro que não, xu. Se lesse, seria difícil e triste: não entenderia. Sem palmas, mas um sorriso de aprovação diria tudo.

Marcelo Labes disse...

Claro que não, xu. Se lesse, seria difícil e triste: não entenderia. Sem palmas, mas um sorriso de aprovação diria tudo.

Costa disse...

lembranças e criatividade andam muito juntas. tempos antigos relembrados nunca são reais, são tão imaginários quanto a ficção. mas dói porque parece que eles não podem ser recriados. doído o texto, e forte. siga!

abraço.

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...