4 de mai. de 2009

Sobre fatos.

I

Vai o sujeito andando pela rua. É um rapaz de bom-humor. Deve ter saído da casa de um amigo, do apartamento da namorada. De qualquer forma, vem tendo um dia bom, pois anda olhando firme e a passos largos, como é normal das pessoas confiantes e bem-humoradas. Teve um dia bom, porque seu humor está aguçado e sente-se a si uma pessoa boa, tem ares de carismático. Caminha para casa por ruas paralelas à grande marginal: é início de outono, apesar do calor sufocante, fora do comum, e a essa hora (batem dezessete horas nos sinos de alguma igreja dali de perto) a luz é engraçada por essas ruelas. Bate, mas não bate. Luz preguiçosa de outono, como é em todos os cantos que beiram o Trópico de Capricórnio. Vai andando e percebe, encostado à calçada, um carro conhecido. O rapaz de bom-humor, não se pode esquecer dele.


II

O carro pára no sinal vermelho. O sujeito conversa com a esposa ou cliente no telefone celular. Nem percebe quando é aberta a porta do seu carro. Ao seu lado, um homem que não consegue identificar como é: não o enxerga. Sente somente algo que cutuca sua barriga, do lado direito, logo abaixo das costelas e uma voz que diz impaciente: “Vai, vai, vai!!!”, e o sujeito anda, assim que o sinal abre. Nem devagar nem rápido. Suas pernas tremem. A essa altura, o homem já lhe tirou o celular das mãos e o pôs na pochete que traz na cintura. O homem perto de casa — mais cinco ruas adiante, dobra à esquerda que vai dar num bairro tranqüilo, nem centro nem bairro, perto do banco, do hospital e da padaria, mas longe do barulho. Com o raciocínio difícil de quem encara um situação difícil, o sujeito pensa que não poderia chegar em casa com o homem a seu lado: estupraria sua esposa e sua filha, torturaria o filho mais velho, quebraria os móveis de design italiano e sujaria o tapete persa novinho, comprado em liquidação. Duas quadras antes de casa, o sujeito pára o carro a pedido do homem que lhe havia seqüestrado. O homem lhe pede o relógio e a carteira, que ele entrega com dificuldade. Só não lhe pede a arma porque não sabe que há uma arma debaixo do banco do motorista. Se soubesse, talvez nunca tivesse entrado nesse carro, mas em outro, com pessoas desprotegidas. Pois que, falando em arma, agora o sujeito motorista lembra dessa. Sabe que consegue pegá-la, já que fez este exercício pelo menos uma centena de vezes, mas não tem coragem. Sabe que conseguiria dobrar o assaltante e meter-lhe uns tiros na fuça, mas não tem coragem. Por poucos não urina nas calças: lembra do banco de couro. O homem assaltante deixa o carro e diz para o sujeito motorista não fazer qualquer movimento com o veículo, que ele volta correndo e lhe tira ainda o carro e a vida. O sujeito motorista obedece. Fica ainda um tempo esperando depois que o homem some do reflexo de seu retrovisor. Engata a primeira — as pernas tremendo — e acelera pela rua paralela à marginal. Chora. Chora como uma criança, e não é senão por isso que ele não consegue mais dirigir. Pára o carro. Agora mais perto de casa. Pára o carro sobre a calçada, na diagonal, como alguém que quisesse estacionar e estancou no meio da manobra. Chora ainda, mas menos. Agora pega a arma. Pega e põe de volta umas vezes, para lembrar do que deveria ter lembrado na hora do assalto. O que não é um homem com o orgulho ferido. Segura firme a arma. Pensa que deve ir atrás do seu algoz, o maldito filhadaputa que lhe fez quase cagar-se de medo. Este que paga os impostos, que paga um bom colégio para seus filhos, que nunca fez mal a ninguém. Enche-se de hombridade, engatilha a arma, vê que consegue segurá-la com firmeza. Mais uma crise de choro, agora encenando o ridículo do orgulho ferido, ele que era a vítima que não tinha quem o desse a mão. A cabeça pendendo contra o peito, o peito pendendo contra o volante, a arma segurada com as duas mãos entre as pernas entreabertas.


III

Vem o sujeito-moço, andando bem-humorado por causa do entardecer de outono e, longe, percebe o carro conhecido. De bom humor e seguro de si, já cumprimentou quatro pessoas desconhecidas pelo caminho de volta de onde estava e só não recebeu o cumprimento de volta de um homem, o último com quem cruzara, que lhe encarou com raiva de gente medrosa. Vê o carro parado, reconhece a placa, diminui o passo. Dentro dele, um homem sentado meio de lado e com a cabeça baixa. Vê, pelo lado esquerdo, que o vidro do lado direito, o vidro do motorista, está aberto. Inclina-se para frente e caminha a passos leves, como que para evitar ser percebido. Quando chega ao lado da janela, levanta-se e grita sorrindo: “Pai!”, enquanto que o homem sentado dentro do carro, com uma arma engatilhada e as mãos firmes que a seguram, sem tempo para pensar, medir, equacionar, despeja-lhe o carrossel de cinco balas. No rosto.

Em 10 de agosto de 2008.

8 comentários:

Rodrigo Oliveira disse...

ca-ra-le-o! porrada como o carrossel esvaziado. Violento como só as coisas q acontecem podem ser. Duca.
P.S.: Vai na fundação na 4ª? Se der, devo estar lá, logo depois do trabalho.

Anônimo disse...

OUCH! Pareciam duas histórias divididas, sem conexão. É um tapa na cara dos melhores. Melhor texto q já li aqui.

DDA Silveira disse...

Ma-ra-vi-lho-so!
Amei!
Adorei começar meu dia lendo isto**
Beijos
DDA

Marcelo Labes disse...

Rodrigo, aconteceu mesmo - aqui mesmo, dentro da minha cabeça. Um dia ainda filmo isso pra espairecer.

DDa, começar o dia assim não dá azia? Muito bom te ver aqui.

Um abraço e um beijo.

DDA Silveira disse...

Dar azia. Isto? Por mais pesado que seja é sempre bom ver uma bela coreografia de palavras dançantes.
Nem todo espetáculo é para nos fazer rir não é mesmo?
Palavras também fazem espetáculos.
E todo espetáculo bom me faz feliz, mesmo que cinza.

beijoca La-le-li Labes!

Marcelo Labes disse...

Alguém, enfim, pra dividir um Cinzano. Gracias, DDa. Passarei por lá, sim.

DDA Silveira disse...

Sou resultado do aborto da noite. As palavras engravidam a noite.
E eu, sou a que morre afogada no transbordar do líquido das pontuações[...]

Elaine Cristina disse...

Bem assim, triste...

já ia avançado o dezembro naquele dois mil e hum já ia também naque le dois mil e vinte os dezembros se mpre têm disso: são somas de térm in...